sábado, setembro 05, 2020

O MILHARAL


Os caminhões foram chegando. Aqui da minha janela eu podia vê-los passando o dia inteiro. De noite eles também passavam, mas eram em menor número. Seguiam pela Rua do Contorno de Lima, subiam pela Avenida Duarte. Basicamente são as vias mais importantes da cidade. Eu nunca vi tantos deles em tão pouco tempo. Algumas vezes as ruas ficavam desertas. No final da Duarte, numa rua de terra que eu nem sei nome - uma rua larga - bem no fim dela, tem uma base militar. Meu pai conhecia alguns deles, militares, dois deles vinham frequentemente na minha casa aos sábados assistir jogos de futebol. Desde a morte do meu pai eles não vieram mais. Então, de repente, os caminhões começaram a movimentar a cidade. Meu sonho é dirigir caminhão, mas eu sei que sou bem novo ainda. Meu pai, quando vivo, me ensinou a lidar com o trator, mas minha mãe não deixa eu fazer qualquer coisa sem um adulto por perto.
Não dá para saber o que acontece na base militar. Ninguém fala sobre isso. Nem os meus amigos da escola podiam falar sobre seus familiares que trabalhavam no lugar. Agora eu não falo com mais ninguém, nem o Geraldo e nem o Vandir, que moram na minha rua. Minha mãe disse que não posso sair de casa. Ela também não sai. Eles também não. Ela me disse que tem uma doença que mata, que se pega no ar. Minha mãe disse que só de olhar essa doença pode deixar a gente com febre. Ficamos sem ar, como quem se afoga mesmo não estando num lago. Ficamos cansados, mesmo depois de dormir a noite inteira. Sem fome. Eu não penso ficar sem comer, nunca. Na minha escola a professora Tatiana disse que a pior coisa o mundo é a fome. Não quero ficar sem fome. Então, por isso não saio de casa. Vou até o quintal, cuido das plantas. Mas deficientemente não saio de casa.
Depois dos meus afazeres, que não eram poucos, minha mãe diz que eu podia brincar. E aí que corria para janela ver os caminhões. Tinha uma época que os pássaros me chamavam mais atenção. Gostava de ver as nuvens brancas se formando antes da tempestade da tarde. Mas, de uns dias para cá, ficava fascinado mesmo pelos caminhões. Que levavam? Traziam algo? Armas e bombas, com certeza. Meu pai fazia bombas. Fazia armadilhas para pegar roedores - Tenho pena de qualquer bicho que fica preso. Meu pai nunca me ensinou a fazer bombas. Eu queria fazer uma bomba agora, para proteger minha mãe e meus bichos, contra essa doença que está aí fora. Não adianta nada, eu sei. Eu rezo apenas. Rezar é diferente de fazer bomba, eu acho. Sempre rezo pela vida.
Num dia desses um caminhão parou perto da minha casa, saiu um homem estranho de dentro do caminhão. Um sujeito alto, magro e de farda. Médico, tenho certeza. Ele tinha na roupa aquela cruz desenhada. Da janela tento ouvir o que ele conversa com minha mãe. Eu sei que é feito bisbilhotar, mas era um caminhão, coisa do exército, algo deveria ser grave. Conversam mais um pouco, então ele parte com uma sacola nas mãos. Desci correndo a escada, dei a volta na mesa da sala, cheguei bem perto da minha mãe e perguntei, curioso, o que aquele homem veio fazer em casa. Ela riu e continuou lavando a louça. Minha mãe não deixava eu ajudar na cozinha, dizia que eu era desastrado. Perguntei mais uma vez, mas eu sabia que agora só me restaria o silêncio.
Dois dias se passaram, de repente o mesmo homem e a mesma cena. Eu do alto, no meu quarto, não conseguia mesmo ouvir a conversa. Só sei que durava pouco. O homem chegava com o caminhão, saia levando uma sacola. Não deve ser o fim do mundo, se fosse eu já saberia. Minha mãe me pegaria pelo dorso e correria para casa da minha avó, que ficava perto dali. Ela dizia sempre que estava com saudade da mãe, que não aguentava mais a espera. Não iria morrer ali sem vê-la novamente. Eu também tinha saudade, mas sabia que era perigoso: o bicho, a falta de ar, esse negócio que mata, mata ainda mais pessoas como minha vó. Não sei direito o motivo, vai ver é por ela não comer direito. Eu nunca vi minha vó comendo: ela faz sopa, bolo, café, pamonha, doces e mais doces; e todos nós comemos, ela não. Será que ela já tem esse negócio da fome? Coitada da minha vó. Então, minha mãe não morreria sem correr para casa da minha vó.
O homem, o caminhão e a sacola.
Algumas vezes ele demorava mais tempo para passar, chegou a ficar uma semana sem aparecer. Eu pensei comigo: minha mãe está namorando. Sim, ela está namorando e não quer falar para mim. Eu já sou quase um adulto. Daqui dez anos vou poder pegar o trator e sair por aí, assim como meu pai queria. Vou dirigir caminhão, quem sabe caminhão do exército. Minha mãe está namorando e não quer falar comigo. Num dia, sem ela saber, eu corri do meu quarto, dei a volta na mesa da sala, fiquei atrás da cortina. O homem tinha chegado com o caminhão, mas ainda estava se preparando para entrar. Eles ficavam distantes um do outro, vai ver minha mãe era tímida. Alguém consegue namorar assim? Então eu ouço a conversa:
“Não está tão bom quanto das outras vezes, o tempo está seco”.
“Eu sei como são as coisas. Os últimos que levei estavam excelentes”.
“Não sei se posso entregar a mesma quantidade na próxima semana, acho que vai ter que aguardar mais uma ou duas semanas”.
“Certo. Aqui está o dinheiro”.
“Não sabe o quanto você está me ajudando”.
“Não se preocupe, são ótimos. Não conseguiria produto melhor no mercado aqui da cidade”.
O homem, o caminhão e a sacola.
Não sei o quanto posso ajudar minha mãe, e nem sei o motivo de esconder que estava namorando. Eu disse que não ligava, minha mãe precisava de um companheiro para ajudar aqui em casa, no milharal, na horta e para cuidar das galinhas. O milharal é onde eu mais cansava, e era o que mais preocupava minha mãe, e não sei o motivo, já que fazia tempo que não comia pamonha.
Vai ver ela não aprendeu com minha avó. Que saudade da minha vó.


20.03.2020

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