sábado, setembro 05, 2020

CRÔNICA DE UMA NOITE DE VERÃO


Séria a última vez que aquela porta seria aberta, última volta na chave. Uma volta apenas. Pé direito, pé esquerdo; eu não posso parar e nem olhar para trás.
Uma mochila com algumas roupas.
Uma garrafa pequena com água. Sempre tive medo da sede. A sede é uma morte horrível. Nosso corpo se desfaz, somos feitos de água (ou de sonhos?). Nossos ossos: água. Nossos medos: pesadelo.
Então, uma mochila com algumas roupas e duas maçãs.
Eu não vou muito longe, eu só quero sair para onde as pessoas não continuem falando.Elas falam sem parar. Nos separamos, eu e eles, por seu falatório inútil e débil. Eu não posso mais ouvir tantas pessoas falando tanto. Todas ao mesmo tempo.
A porta está fechada para nunca mais, o caminho está ali, na minha frente. Serão noites cansativas sem sono, serão dias quentes sem sombra, mas eu continuarei andando. A porta se fecha, um céu se abre.
"Posso segurar a sua mão quando eu estiver com medo?"
Eu não tinha um lugar para ficar, mas eu imaginava que seria acolhido por alguém. Prostitutas, pastores ou mendigos; nos somos pecadores, e todos são solidários diante da dor. A minha dor era imensa, mas meu ódio era pior. E por odiar, fechei a porta; uma volta apenas na chave, sem olhar para trás.
"Você está com fome? Tenho um pedaço de pão".
"Não tenho fome, tenho duas maçãs".
"Mas você está com uma cara de cansado".
"Mas não estou com fome".
"Tem lugar para dormir? Cairá uma chuva forte essa noite. E as chuvas são sempre perigosas".
"O quê elas podem me causar"?
"Elas podem levar tudo que você ama".
"As chuvas não poderão carregar aquilo que eu não tenho".
Continuo andando e ao longe escuto a pregação. São os sinais do tempo: a maldição, a fome e a desavença. Irmão contra irmão, pai contra filho; e ao longe o sermão fica cada vez mais longe: o ódio e a vingança não me ajudarão nesse momento tão funesto. Versículo, capítulo e a profecia: não atingem em cheio meu coração. Não por serem o que são, mas por partirem de quem também não encontrou a paz. A verdade está muito distante de todos nós.
Uma maçã, duas. O fim dos passos, direita e esquerda.
"Se eu dormir você me acorda"?
"Você não pode dormir aqui. Tem algumas pessoas lá fora me esperando".
"Quero dormir sendo observado".
"Já tive pedidos estranhos, mas esse é a primeira vez".
"Sim, quero estar seguro. Eu durmo, você me acolhe".
'Não sou paga para ver alguém dormir".
Fecho a porta, duas três voltas na chave.
Nasceremos tranquilos na manhã seguinte: sem roupa, sem água e sem maçãs.
O amor, ao invés do ódio, nasce nos locais mais impróprios, em situações mais imundas; mas nessa sordidez, alguém que sabe silenciar quando é preciso; é quem verdadeiramente saber amar.

06.11.18

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