quinta-feira, fevereiro 27, 2014

Lobo Mau


Não necessariamente me considero um assassino. Longe pensar que tenho qualquer prazer no meu trabalho. É tão comum histórias como a minha, que pensei inúmeras vezes antes de me sentar aqui nessa mesa, com papel e caneta na mão e começar a contar sobre determinados acontecimentos. Não existe nenhuma anormalidade em ser contratado para matar alguém. Profissão tão antiga. Acho que só perde para as prostitutas; tão essenciais quanto os matadores profissionais. Não me intrigava a situação que estava presenciando naquela casa. Estava mesmo era preocupado com a informação que daria para o meu contratante. Uma coisa não havia funcionado bem, ele precisava saber disso. Ou não deveria saber?  

No sofá, tranquila, a vítima. Ela sabe que eu tinha um plano macabro. O dinheiro já estava guardado, a arma engatilhada. Bastaria um tiro para que o serviço estivesse completo. Ele não queria qualquer prova, fio de cabelo ou foto. Não queria nada, apenas uma ligação minha confirmando a morte da garota.  Coisa de confiança mesmo. Não sei o nome dela, nem a idade. A maioria das minhas vítimas eu só sei o suficiente. Não é necessário saber mais do quê uma foto guardada no bolso da camisa. Nem sempre as informações são precisas. E se eu estivesse errado dessa vez? Embora nunca tenha errado. Sento-me no sofá. Estou de frente para a garota. Ela está amarrada. Eu continuo com a arma na mão.

“Quantos anos você tem? Quinze?”.

Como pode ter algum inimigo aos quinze anos? Poderia perguntar o nome da garota, mas isso começaria a caracterizar uma intimidade. Odeio ter intimidade com pessoas que vão morrer. A garota está assustada. Quem não estaria? Eu não fico assustado com a morte. Acho que, em muitos casos, é como um prêmio. Sempre estive do lado da morte. Meu pai também era matador, me ensinou muito. Nunca deixou um trabalho incompleto. Hoje os tempos são outros. Uma complexidade enorme. Os profissionais dessa área precisam de uma reciclagem. Apoio psicológico, às vezes. Nunca precisei de qualquer ajuda. Quer dizer: uma vez tive que matar uma pessoa: A curiosidade era que o contratante queria que ela fosse envenenada. Tive que fazer uma pesquisa, conversar com alguns amigos; até que cheguei numa conclusão interessante. O veneno utilizado foi um sucesso.

Voltando para a garota: “Você tem algum inimigo?”.

É difícil responder quando se está amordaçado. Mesmo assim continuamos mantendo contato. Ela respondia balançando a cabeça. Perguntei se os pais eram vivos – Ela poderia morar com a avó, por exemplo - Perguntei se ela estudava. Se ela tinha amigas. O principal: se tinha namorado. Para todas as minhas perguntas uma resposta afirmativa. Com a questão do namoro ela ficou encabulada. Ela tinha um namorado. E pelo visto era nossa primeira confidencia. Ninguém na família sabia. Somente eu. Um completo desconhecido. Pego a foto no meu bolso: era ela. Não tinha como errar. Pela primeira vez fiquei curioso em saber quem era o mandatário. Nunca quero saber, nunca é bom saber. Não é bom saber nada da vítima também, pois o pecado parece ser maior. Acham que, mesmo eu sabendo não ser um assassino, mas sim um matador profissional, ainda assim não estou pecando? Matar alguém por ódio, ou dinheiro, é parecido, sendo que para o primeiro o inferno é mais rigoroso.

Embora não acredite em céu ou inferno.

Disse para a garota que eu fui contratado por um homem, mas que não sei o nome dele nem onde mora. Coloco a arma na mesa novamente. Não pretendia usá-la, pelo menos por enquanto. Eu pergunto para a garota se ela iria gritar caso eu tirasse o esparadrapo de sua boca. Mais uma vez ela responde que manteria a calma, apenas gesticulando com a cabeça. Como eu sei que ela disse isso? Eu não sei, eu apenas acreditei que ela não fosse gritar. Cuidadosamente eu arranco o esparadrapo.

“É o Ailton?” – Ela começa.
“Quem é esse sujeito?”
“Meu namorado. Eu disse que estava grávida quando ele me largou”.
“Mas você está grávida?”
“Claro que não”.
“Ailton quer te matar?”
“Só pode ser ele. Ele brigou comigo por causa da gravidez”.
“Você teve a brilhante ideia de dizer que estava carregando um filho dele para ele não largar você?”.
“Eu estava desesperada.”.

Ailton era casado e bem mais velho. A garota na minha frente era muito bonita, mas era uma criança. Não sei que desejo incontrolável desses maníacos, velhos e endinheirados. Ela disse que Ailton disse que a amava. Ela acreditava no amor, tinha escutado uma música que dizia que o amor não tem idade. Que porra de música nossas crianças estão escutando? Eu continuo atendo no que ela está me dizendo: os pais realmente não sabiam de nada. Jamais permitiriam um namoro de uma menina de quinze anos (quase dezesseis) com um sujeito com quarenta anos de diferença. A conta não era bem essa. Nunca fui bom em matemática.

Ailton não faria uma coisa dessas, penso.

“Só sei que foi um homem, não sei se foi o Ailton”.
“Quanto ele pagou?”.
“Que interessa isso?”
“Quero saber quanto eu estou valendo”.
“Não dá para discutir uma coisa dessas. A vida não tem preço”.
“Mas você vai me matar por um valor, não vai?”
“Não sei se vou matar você”.
“Que justificativa tem para não me matar?”.
“Realmente não tenho justificativa nenhuma”.

Diria para a garota: Está correndo perigo. Que ela precisa informar a mãe e o pai que está sofrendo ameaças. Deve informar a polícia também. A polícia é essencial. Se pudesse, era melhor que mudasse de endereço. Também teria que mudar de escola. Esquecer aquela vida que ela estava vivendo. “Sua vida daqui para frente não poderá mais ser a mesma!”. Eu pego o telefone. O único contato que eu tinha com o contratante era um número. Liguei. Do outro lado a mesma voz me atende. Um “alô” rápido. Apenas um “alô”. Nada mais. “Alô?”. Não pergunto se é o Ailton, como disse; não me interessava. Então eu respondo convicto:

“Está consumado”.

Desligo o telefone e nunca mais falei sobre o assunto.








Texto 2 - Aguarde-me com sorriso


quarta-feira, fevereiro 19, 2014

O nu e o trem


O nu nem sempre é belo. Nu de homens e mulheres, quando repletos de realismo, pior ainda. Alguns gostam de contemplar a realidade. Eu prefiro a imaginação. Prefiro a ilusão. Por isso decidi ser cineasta. Quando eu era mais novo preferia a beleza escondida. Adorava imaginar como era a nudez. Adorava, portanto, mulheres que se cobriam com um recalque admiravelmente sensual. Mulheres que conseguiam esconder seus seios volumosos (ou não). Seus pelos sempre submersos. Tudo pode ser recriado, diferente do quê verdadeiramente é. Essa era a minha grande missão. A nudez, portanto, me tirava o alívio dos sonhos; mas me trazia, muitas vezes, a decepção da verdade.

Não fui um cineasta famoso, e pelos ventos que sopram, nesses dias mais quentes, jamais serei. Vivo de um dinheiro miserável do governo, benção magistral aos novos idosos que, como eu; nunca foram avessos ao trabalho. Sou representante de uma classe injustiçada. Assim como os professores, intelectuais e políticos. Todos nós somos julgados como viajantes do mundo, sem parada e sem trabalho. Cineastas são criticados por aquilo que os outros acham que eles têm; não pelo que eles exatamente são.

Não tenho nada, apenas uma história.

Abro a janela do trem. Ainda era de manhã e os ventos dessa hora renovam qualquer pessoa. Tinha chovido a noite anterior e com isso o matagal em volta dos trilhos tinha um cheiro muito característico e atraente. A brisa úmida chegou a molhar meus óculos (Acessório indispensável desde os meus três anos de idade). Na escola, depois de descoberta a miopia, sentia-me como um adulto inteligente ao passear elegantemente pelo pátio, afinal de contas o objeto era relacionado ao intelecto. Homens de óculos são os mais inteligentes, me disse uma vez uma namorada. Embora não acredite nisso hoje em dia, acreditei por um bom tempo. Acreditei que eu realmente era a melhor e mais poderosa pessoa do mundo, até que o mundo bateu à minha porta, abrindo sem meu consentimento; tirando o meu disfarce.

Aos quinze anos escrevi meu primeiro roteiro. Contava a história de um sujeito que manteria amizade com um camundongo durante anos. Trocavam confidências. Era complicado filmar um camundongo, eu pensava. Talvez tivesse visto coisas desse tipo apenas nos desenhos animados. O camundongo iria morrer envenenado. Veneno colocado pela mãe do protagonista. O que eu queria dizer com aquilo? Não sei. Algumas vezes queremos não dizer nada. Só pensamos nos enigmas e nas considerações de uma obra artística quando ficamos velhos. Críticos adoram esmiuçar um texto, um filme e uma música, tentando descobrir alguma coisa oculta – Eles podem ler esse pequeno texto e não acharão nada. Esse texto é como uma carta, ainda sem destinatário, que narra a minha ida, junto com minha esposa, ao encontro do meu filho.

Não haverá nada a ser explorado. Se vocês querem enigmas, sugiro outras espécies de obras. Crimes, sangue e violência? Estará longe daqui. Vejam a paisagem enquanto o trem se move. Existe algum mistério nisso tudo?  Imagino uma câmera, focalizando entre os dedos o melhor enquadramento. Que bobagem sermos aquilo que pensamos ser. Entrei na faculdade, mas não me formei. Continuo me achando um cineasta, ainda que não saiba absolutamente nada sobre como fazer um filme, como analisa-lo em todos os seus processos. Fui apenas um vendedor de produtos de limpeza. E dessa forma sempre estive perto das melhores histórias que um homem pode viver: as mulheres. Ainda que eu entrasse em algumas empresas, com seus truculentos barbados me oferecendo um cafezinho; era pelas mulheres, nas ruas e cotidianas, que eu sempre fui apaixonado.

“Você sabe que horas eles servem o almoço?”
“Posso perguntar”.
“Você nunca sabe de nada”.
“Faz anos que eu não viajo de trem”.
“Você é um medroso, isso sim.”
“Quem estava com medo de entrar no trem?”
“Não estava com medo, você sabe bem. Eu tive um pressentimento”.

O trem viaja mais umas duas horas até que as portas do restaurante são abertas. Com dificuldade de toda aquela trepidação, com a nossa já falida coordenação motora; conseguimos chegar numa mesa vazia. Pedimos os pratos. Eu me sentia como uma criança novamente. A última vez que experimentei uma comida servida num trem eu tinha treze anos (e ainda não usava óculos). Era complicado o movimento da mastigação. Também era para beber, conversar e desistir de conversar. O barulho naquele vagão era enorme, o que dificultava o entendimento entre mim e minha esposa. Por horas fingimos conversar. Fingimos conversar quando estamos vendo a novela. A televisão nos trouxe uma espécie de delírio quase esquizofrênico.

O trem para.

A estação estava vazia. Um vendedor de pipoca havia se escondido da chuva que tinha acabado de cair. Um cachorro vira-lata do outro lado, olhando para a vida como se nada estivesse acontecendo. Na verdade nada acontece. Nada acontece diferente de ontem. Nada diferente de hoje. Nada diferente amanhã. A vida é uma sucessão de acontecimentos previsíveis e ao mesmo tempo ignorados. Damos valor apenas ao que não conseguimos compreender, aquilo que supomos perceber. A verdade é que vemos a vida como a nudez: supomos ver os corpos onde há apenas as roupas.

Por isso gosto do cinema.




(Texto 1 de - Aguarde-me com Sorriso)