quarta-feira, fevereiro 09, 2011

FOLHA 10/05 – PAIXÃO SEM CAUSA



Que eu saiba, aqueles dardos não estavam envenenados. Se ela estava sentindo alguma coisa, não era pelo acerto involuntário do arqueiro. Era mais do que isso: sentia calafrio, desespero, medo. Cá entre nós: nenhum veneno seria suficientemente poderoso para deixá-la daquele jeito. Mesmo assim ela se debatia no chão, gritava, chorava. Seu sofrimento era visto por todos, pacientemente. Era como se ninguém pudesse socorrer a garota, ou pelo menos dar-lhe um ombro para as últimas lamentações. Ela morreria, com certeza. E todos só contavam com isso naquele momento, não por desejo; mas por impotência.

Quem era? Ninguém sabia. Nem mesmo o que ela estava fazendo na agência bancária naquele desgraçado momento. Um assalto: cinco homens entraram no banco, pediram o dinheiro. Todos os outros se abaixaram, era uma ordem. Eu assisti tudo, estava deitado perto do bebedouro. Dois homens ficaram na porta, olhando cada movimento do vigia. Outros dois em direção aos caixas. Um único, o mais forte; pegava o dinheiro. Não demorou muito, cerca de quatro minutos; nem consigo entender como um tempo tão curto pode demorar tanto. Uma eternidade, cada movimento dos assaltantes.

Lembrei que poderia não estar naquele banco. Pensei que poderia não haver aquele assalto. Pensei que eles poderiam me matar por qualquer bobagem. Pensei muito em minha vida. Minha vida não estava sendo muito boa. Estava ali para pedir um empréstimo para quitar minha moto. Eu trabalhava de noite, entregava pizza. Briguei com Angélica, na verdade desmanchamos. Meu pai continuava bebendo, minha mãe continuava reclamando. Uma única reclamação em voz alta poderia ser meu fim, bandidos não gostam de pessoas que reclamam da vida. Fiquei em silêncio em meus pensamentos.

Eles se juntaram no centro do banco. Pareciam aguardar algum comando, algum mísero comando para irem embora. Ficaram parados, estavam aflitos. Todos naquele lugar estavam aflitos. Eu baixei minha cabeça, não queriam que me vissem bisbilhotando, afinal não era da minha conta nada daquilo (desculpe-me o trocadilho, afinal o momento é tenso). O homem com o pacote de dinheiro gritou: “Cadê o filho da puta do Meca?!” Quem era Meca? Acho que era o cara que estava com o carro do lado de fora do banco. Sempre acontece isso nos filmes. Os quatro bandidos correm para fora do banco, jogam as sacolas com dinheiro e fogem da polícia. Meca não chegou até agora.

O que é o tempo? Em dois minutos decidi entrar nesse banco e pedir o empréstimo. Em três meses perdi meu emprego, minha vô morreu, roubaram meu carro, briguei com minha noiva por causa de uma outra garota e arrumei esse emprego de entregador de pizza. Noivado de cinco anos acabado por causa de uma garota que me fez feliz por seis segundos (uma ejaculação não dura mais do que isso). Um assalto saindo errado por causa de alguns minutos de atraso. Meca já estava um minuto atrasado.

Antes de fugirem: um movimento qualquer do corpo pode demorar segundos. Levantar o braço em direção a cabeça deve demorar uns dois. Uma mulher começar a chorar por causa de um assalto pode demorar três minutos. Uma criança querendo mamar dentro de um banco pode ser instantâneo. Um vigia tentar salvar a todos pode ser uma grande burrice. O vigia ainda estava com a arma na cintura. Quem foi o idiota dos cinco bandidos que não percebeu isso? Ele aponta a arma para um deles, indistintamente. Por sorte, por simpatia. Mira na cabeça. atira!

Quantas pessoas podem se esconder num tumulto? Várias. Eu continuei no mesmo lugar. Ainda estava rezando. Uma senhora se escondeu atrás da mesa do gerente. Tentaram lhe acertar um tiro. Todos, ou quase todos se salvaram. Uma garota estava com medo, se levantou calmamente; era como se não tivesse percebido nada. Quanto tempo demora para percebemos que estamos em perigo? Buscar abrigo, sei lá correr para algum lugar escondido? Deve demorar pouco. Ela ficou parada, observando as pessoas correrem, e os bandidos atirarem. Era como se nada estivesse acontecendo.

Um tiro certeiro. Não existia nenhuma maçã em sua cabeça. O alvo era aquilo mesmo: uma esfera com orifícios coberta por fios dourados. Espalha sangue por todos os lados. Não era uma flecha envenenada. Nem um dardo. Era uma bala. Os bandidos fogem, e um morre; estamos atônicos com aquela imagem violenta, uma mulher morrendo. Meca chega bem na hora da fuga; mas chega atrasado. Poderíamos estar vendo a garota ainda viva.


Eu poderia tê-la encontrado na porta do banco. Ter me apaixonado. Iria convidá-la para um almoço. Vão dizer que isso não era possível? Em poucos minutos estaríamos longe daquele lugar. Ela não teria levado um tiro na cabeça, e eu não teria que lembrar as coisas ruins da minha vida. Sei que mais nada importava: nem noiva, nem mãe, nem pai, nem bandido. A moto eu vou devolver para a loja. Ela nem iria fazer tanta falta. A garota.... essa sim não sai dos meus pensamentos.
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quarta-feira, fevereiro 02, 2011

Cartas ao vento 031


Já pensei numa reunião de pensadores. Todos aqueles que eu já li em minha vida. Não são muitos, pensei naqueles mais conhecidos: alemão, judeu, gregos e afins. Então, esses camaradas que tentaram decifrar o mundo; todos eles numa mesa, comendo e bebendo alguma coisa gelada. Esqueci de dizer: o dia da conversa entre os pensadores é um dia muito quente.

“A cerveja não está gelada!”

Essa frase tratada como algo importante. Frase que daria matéria-prima para os delírios. Um discutindo que tal, outro que nada sabe. A cerveja gelada era um inferno para todos eles. Não há tantos teólogos nessa minha mesa, infelizmente.

“A felicidade existe!!”

Um deles grita.

Mas ele não sabe realmente se a felicidade existe, apenas pensa saber. Isso é pior do que não saber: a felicidade tem fim. O resumo de todos eles ali, comendo uma porção de camarão e queijo parmesão com uma cerveja gelada. Muito gelada. A felicidade existe, saudamos.

Mas ela não existe, sabemos bem disso. Mas não nos importamos. É melhor ignorar o fato que sabemos, fiquemos todos com a suposição. A felicidade ali, em poucas horas. Logo todos terão que partir para suas casas, suas vidas; seu cotidiano. Cotidiano é a pior infelicidade de um ser humano, diz um deles; mais aventureiro que filósofo. Todos nos concordamos com ele.

E se a felicidade existisse? Quer dizer, se ela existir de verdade. De mentira, subjetiva; ela está aqui agora, conosco bebendo cerveja. Mas de fato, objetiva? Não existe e todos nós concordamos. Mas se existe? Pergunta que não era para ser feita, todos cabisbaixos. Se ela existe de verdade e não a encontramos? Se ela estiver do lado de fora, esperando abrirmos a porta?

De repente a euforia virou preocupação: concordamos mais uma vez que era melhor que a felicidade não existisse, estávamos todos contentes com a ilusão de tê-la encontrado.

Mais um brinde!
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