sábado, setembro 05, 2020

MANUAL DE FUNCIONAMENTO


Charles e Reinaldo são irmãos. Moram na Zona Sul de São Paulo. Uma cidade dentro de outra cidade. Charles é ajudante de pedreiro, Reinaldo ajudante de padeiro. Vinte e dois anos, dezenove. Sei lá quanto ganham de salário por mês, atualmente ganham quase nada. O mundo enfrenta uma pandemia, São Paulo é o pior lugar do Brasil para Charles e Reinaldo, pois é exatamente neste lugar que Dona Gumercinda descobriu estar doente, bem doente. Coronavírus? Ninguém sabe, ninguém tem condições de dizer. Então, os dois irmãos estão agora em frente ao hospital. A mãe deles, depois de muito insistir e não ser atendida, foi carregada de volta para a casa. Barraco, digamos. Barraco mesmo, sem quase nada de bom. São Paulo é hoje um maldito lugar para os dois irmãos.
A mãe tomou todos os cuidados que apareciam nos noticiários. Lavava as mãos com frequência. Mas tinha que trabalhar, continuou trabalhando até que veio uma febre, uma dor de cabeça e a falta de ar. A patroa disse que era melhor ela procurar um hospital. Deixou o dinheiro do ônibus em cima da mesa, disse que estava aguardando notícias da recuperação. Gumercinda ligou para Charles, que não viu o recado. Reinaldo também soube depois da piora da mãe. E ela que estava se queixando desde o final de semana. Hospital lotado, ela espera sua vez. Chega então Reinaldo, depois Charles. Não tem como ficarem, não tem mais cama. Não tem mais médico. Sabe rezar? Pergunta uma das atendentes.
Mas olha eles ali, em frente ao hospital.
“Sabe como funciona o equipamento”?
“Sou padeiro, sabe disso”
“Deve ser fácil, pó!”
“Coloca a máscara na cara da mamãe, liga o botão vermelho. Eu vi eles ligando o botão vermelho na televisão”.
“E os fios?”
“Que fios, desgraça?"
“Nos filmes eles colocam um monte de fio no doente”
“Não, não. É só a máscara mesmo. É para respirar, é para ajudar a respirar”.
Uma ambulância chega com mais duas pessoas, duas mulheres atropeladas. Eles se escondem atrás de uma árvore, ficam observando o momento certo para agirem.
“Eu entro e tiro a máscara de um véio, depois pego a máquina e coloco na sacola”
“Mas a máquina é grande, porra!”
“Não, é pequena. Parece uma batedeira de bolo”.
“O cacete, é grande. É do tamanho do micro-ondas”
“Micro-ondas cabe nesta sacola, então”.
“Só não sei se é 220”
“O chuveiro é 220, o micro-ondas, não”.
A ambulância sai, eles continuam olhando para a entrada e saída do hospital.
“Vai escolher de qual velho?”
“Aquele que for bem véio mesmo”
“Como você vai saber se ele está morrendo ou se recuperando”?
“Não sei, não dá para saber”
“Pergunta para algum médico”
“Não vai dar muita pinta, não? Perguntar para um doutor qual paciente ´tá morrendo? Quer que avise também que ´tamos roubando o respirador?”
“Não, melhor, não. Vai pela cara mesmo. Velho morrendo faz careta”,
“Você só pode estar brincando”.
“Pega qualquer um, lembra que nossa mãe está morrendo”
Eles se movem em direção à entrada, estão certos do roubo. Reinaldo para por uns minutos dá dois passos para trás.
“Se eles descobrirem? Se os seguranças começam atirar?”
“Por isso que temos que fazer escondidos, sem causar alarde. Vai lá, tira a máscara dos velhos, pega a máquina e coloca na bolsa. Simples, caralho!”
Charles mostra a arma debaixo da cintura.
“Comprei ontem do Zóio”
“Que merda é essa? Se o papai ´tivesse vivo…”
“Ele não está vivo”.
“Não fala merda!”
“Entra lá e pega a merda da máquina”.
Charles e Reinaldo chegam até o barraco, mas já não precisam mais saber se a máquina funciona ligando o botão vermelho.
(Coletânea de Crônicas sobre a Pandemia, 2020)


26.04.2020

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