sexta-feira, novembro 14, 2014

DESCONECTADO: Invoque Criolo

 

Criolo refaz sua obra. Depois do aclamado “No na Orelha”, eis que o rapper paulista aparece com um novo lançamento, onde pompas e jogadas de marketing são ignoradas por completo. Era o que se esperava depois do sucesso enorme do seu segundo álbum, mas não foi o que aconteceu. “Convoque seu Buda” surge tão tímido e introvertido como parece ser o próprio autor. Disponível gratuitamente para a massa, chegando a qualquer e para qualquer ouvido que goste de música; posso dizer que esse novo trabalho é uma grande surpresa. Se você virou fã do trabalho anterior, espere uma maturidade maior para este lançamento.

“Convoque seu Buda” é a consagração da crônica urbana em forma de rap. Criolo parece conseguir esse efeito linguístico, com uma leveza não muito comum nas músicas deste estilo; onde o dialeto e a regionalidade são características marcantes na crítica social. Criolo gosta do humor, gosta da filosofia; repete fórmulas que socializam sua música em guetos tão diferentes de sua origem, navegando em grupos que, em sua maioria, são alvos de suas críticas. Isso não importa muito: não há um inimigo declarado, personalizando o “sistema”. O sistema não é mais um conjunto de medidas desassociadas das pessoas. Convoque seu Buda é a brasileiríssima forma de se discutir o rico e o podre, espírito e corpo; sociedade versus capitalismo. Criolo desvenda com olhar subjetivo mais uma vez São Paulo de tantos contrastes.

Ao mesmo tempo parece ser uma obra muito pessoal, contando cada item observado pelo narrador de tantas situações corriqueiras de nossa vida. A forma clássica e não habitual para um rapper, coloca-o entre compositores do fechado grupo da MPB. Tal como um Chico Buarque do rapper – é claro que estou exagerando – Criolo consegue chegar ao limite da compreensão de tantas situações, que parece mesmo que ele é, ou se transforma, em vários “eus” da sua linguagem literária. No aspecto musical, acho que a evolução desse segundo álbum é nítida. Ainda que faça uma sopa de referências, e nem sempre isso é bom; fica claro que a música religiosa (Umbanda e Candomblé), assim como o samba; Geraldo Vandré, Azevedo e Zé Ramalho acabam participando indiretamente da obra. Em uma das canções uma novidade, o reggae.

A primeira música é CONVOQUE SEU BUDA, que dá nome ao álbum. Quem consegue colocar: “Nin Jitsu, Oxalá, capoeira, jiu jitsu, Shiva, Ganesh, Zé Pilin” numa mesma música? Criolo mostra a luta do dia-a-dia e a necessidade de trazer a espiritualidade contra a sociedade do consumo, dito pela a música como um dos maiores males da sociedade moderna: “Depressão é a peste entre os meus, plano perfeito pra vender mais carros teus”. ESQUIVA DA ESGRIMA tem o melhor refrão do álbum, a música remete a melhor fase do disco anterior, talvez a maior referência do seu sucesso anterior: “Cada maloqueiro tem um saber empírico, Rap é forte, pode crê, oui, monsieur, Perrenoud, Piaget, Sabotá, Enchanté” é a indicação de que haverá dentro do rapper das ruas a inclinação do pensamento do primeiro mundo.

CARTÃO DE VISITA mostra o Criolo da crítica bem humorada. A riqueza e a pobreza dentro de um mesmo universo. Crítica aos movimentos sociais, como os tais “rolezinhos” que foram uma febre no começo do ano. CASA DE PAPELÃO fala sobre pessoas da rua, viciados em craque: “Toda pedra acaba, toda brisa passa, toda morte chega e laça; são pra mais de um milhão”.  A pior música do álbum é FERMENTO PARA MASSA; acho o refrão enjoativo e uma letra muito fraca. PÉ DE BREQUE um reggae cheio de efeitos sonoros.

PEGUE PRA ELA é MPB na certa. Volta com o PLANO DE VOO com o rap em sua estrutura mais essencial. Como repentista urbano fala do mundo, das coisas que está vendo; com suas palavras: “Do monstro que se constrói com ódio e rancor a cada gota de bondade uma de maldade se dissipou, várias fitas... Eis uma definição pra vida...”. DUAS DE CINCO é outra que traz o rap em sua essência, uma das letras mais interessantes do álbum: “Absolut, suco de fruta, mas nem todo mundo é feliz, nessa fé absoluta. Calma filha que esse doce não é sal de fruta. Azedar é a meta. Tá bom ou quer mais açúcar?”.

A música FIO DE PRUMO pode ser colocada em qualquer obra dos grandes nomes da MPB. Participação especial de uma grande voz da nova MPB, Juçara Marçal. A música é uma saudação às forças da natureza. A cidade como uma selva de pedra, se digladiando com elementos  concretos: Laroyê bará, abra o caminho dos passos, abra o caminho do olhar, abra caminho tranquilo pra eu passar”.

Uma coisa que não podemos dizer desse novo álbum: que ele é sóbrio. Não é nem de longe uma obra consistente, mas cheia de maneiras diferentes propostas pelo cantor. Até mesmo a capa pode dar uma pista em relação a isso. Não me surpreenderia se o álbum se chamasse “Torre de Babel do Criolo” ou coisa parecia. Por isso, caso tenha gostado do primeiro álbum, corra para adquirir esse novo lançamento. Se não gostou, busque esse novo lançamento: ele trará surpresas que você pode não ter percebido anteriormente.

Escute: Esquiva da Esgrima, Casa de Papelão e Fio de Prumo
Criolo, Convoque seu Buda – 2014 - Nota: 8,5







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sexta-feira, novembro 07, 2014

A mulher que sorri de Moares

 

Entediado, eu que rogado, nunca fui de samba:
Outrora o passado, que é presente, um passado
bem distante; lá dos poetas e violeiros; eu fui.
Lá tinha gente comum, mas semideuses, do poema
da música e de conhecer você, qualquer mulher.
Eles sabiam os olhos, sabiam a alma; entendiam
de algum modo mais que eu, qualquer sorriso.
Quem dera um dia, ao piano e uma letra, eu
cantando desafinado, como fora a música, hoje.
E gritam o sarava de uma fé desconhecida,
e riem das desgraças do vento, que causam
solidão, a dor e o pouco do desamor:

“Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos!”

Entre eles me sento, pego uma cerveja; bebo.
Se fumo, naquela foto branco e preto, fumo pouco.
Mas amo mais, pois amar ali, naquela história;
parecia ser mais livre e mais compreensível.
O poetinha, que curvava-se pela mulher morena;
não tinha qualquer vergonha de amar.
Não tinha vergonha a mulher, ainda que chorando;
de sorrir de qualquer bêbado que chegava
a noite, sem qualquer desculpa; com qualquer
tormento e a camisa branca manchada de vermelho.
E ali, naquela foto em preto e branco; podia-se dizer
Em alto em bom som:

“Sem você meu amor eu não sou ninguém”.

Que saudade daquela época, quando estou entediado.
Saudade de sorriso da mulher que não conheço.
Sorriso de poder escrever sobre você: 
Amar, cantar, fumar e beber; saudade de rimar, 
em decassílabos sonetos; prosas e versos, 
escrever sobre você; 
mulher que nos sonhos aparece sempre sorrindo.


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quarta-feira, novembro 05, 2014

Politicavoz: Noites sem sono?

Apesar do título, o texto não fala sobre política, mas como as relações ficaram depois das eleições presidenciais de 2014.


Tentei me desvencilhar de toda essa discussão política, mas não consegui. É mais forte que eu. O defeito, embora alguns acreditem ser uma ótima qualidade, é minha maneira conciliadora. Assim, por mais que eu relute, e mesmo observando o assunto encerrado e saturado; sempre procuro elementos para a construção de mais algumas páginas nesta tragicomédia. E foi grandiosa e épica: Irmãos contra irmãos, pai contra filho e chefes contra empregados. As eleições presidenciais me fizeram observar um elemento novo dentro do meu convívio, de pessoas que eu conhecia; que são minhas amigas; íntimas: a intolerância. Não chorei pela derrota do Aécio, tampouco comemorei a vitória da Dilma; pois nos minutos que se passaram depois do resultado final, levei comigo apenas um sabor amargo das relações.

Nem todos, alguns foram decentes. Mas é oásis no meio dessas relações virtuais a compreensão, ou pelo menos o respeito, entre as pessoas. Parece que o distanciamento real nos dá, nos elementos virtuais, chancela para nossa crueldade. Podemos ser um pouco racistas, machistas e por vezes, macabro. Fui chamado de filho de uma puta por pessoas que eu nem conhecia. Pior ainda, chamado por aqueles que me conheciam. Foi um misto de dor, de vontade de pagar na mesma moeda; de ser tão ou menos humano que todos eles. Sim, filho da puta. Não ousaria mais uma vez escrever a palavra, visto a estranheza que me causa aos olhos e aos ouvidos - Amargurem-se comigo, nadei agora um pouco no mar da insanidade – Pai de família, empresário; dizia-se muito bem educado em escolas conceituadas.

Tudo bem, eu vou indo muito bem. Não carrego na bagagem tanto ódio. Ainda que me sinta insatisfeito com os rumos políticos no Brasil, mesmo assim ainda não quero ter esse direito. Direito de querer a todo custo humilhar aquele que, nem nos piores pesadelos, é meu inimigo. Eleitores do Aécio ou da Dilma não são meus desafetos, mesmo que se mostrem assim, em suas maiores e mais frequentes opiniões; prefiro que eles continuem comigo, no meu convívio. Embora ainda tenha dúvidas em relação ao meu tom conciliador; prefiro ainda que tenha esse caráter minhas relações.

Aquele que não se sentiu ofendido, melhor assim. Aquele que sentiu que ultrapassou o bom senso, é momento de pedir desculpas. Não para mim, não as exijo nem sob tortura. Não foram a mim que humilharam, foi uma humilhação interna; intransferível. Humilharam-se quando decidiram que determinados argumentos, como num ringue ou briga de rua; eram essenciais para se ganhar a disputa. Não preciso de desculpas. Não quis e não quero participar dessa gincana de adolescentes birrentos, que encontram prazer em jogar o ser humano, julgado diferente, na sarjeta; como uma espécie que não pensa e que não tem suas próprias considerações sobre os mais diversos assuntos.

Realmente eu não me ofendi com todas alcunhas que foram disparadas sem qualquer critério. Minha ofensa é pela verdade que apareceu nas mais diversas pessoas, das mais diversas classes; das mais diversas maneiras. Enfim, mesmo que tenha sido muito doloroso, pude presenciar aquilo que algumas pessoas guardam bem no fundo do baú, lá escondido entre os péssimos sentimentos. Pela primeira vez as redes sociais não transbordaram um mundo de fantasia onde todos se amam, mas um local de uma suposta liberdade; onde nem mais se aturam.


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sexta-feira, setembro 12, 2014

Prostíbulo


E no ar reflete, chamo.
Onde transa aos poucos, e
ainda, e versa; ultrapassa.

Quando chegar a hora
avise-me sem demora.
Seca e finda, final da noite.
Onde está? Como está?
Deito como encontrado.
Peito dormente, olhos cansados.

Felicidade? Jamais procuramos.

E as mãos de um crime:
Toca, leve; leva e a neve.
Não há frio, nunca houve.
Sequei, acabei.
É o fim da noite? Leve.

Tente mais uma vez,
Não se arrependerá.
E a boca; que esconde o crime.
Toca, tensa; leva e engole.
Como está? Onde está?
Ainda, e verso, teimo;

Chego a me apaixonar
quando chega a hora de ir embora.

Mas passa, logo passa.
Você já espera me esquecer:
Estamos quites nessa noite.


quinta-feira, setembro 11, 2014

Palavras nos muros


É tempo em que palavras desdizem.
Se remetem ao amor, ao dissabor,
logo, em pequenos passos, vão sem direção:
Transformam-se em ódio.
Palavras de saudade, choro.
De amizade: brigam, como crianças
que sempre têm razão.
Se azul, das cores livres; o preto.
Dos escravos, a história de tanto sofrimento,
ouve-se velado um desrespeito.

Ninguém entende nada da finalidade de ser humano.

A podridão da guerra, a folia dos genitais
ardendo em fogo: Blasfema palavras!
É tempo em que as palavras dizem nada.
Meia noite ou meio dia; sem qualquer sabor.
Não fica, nem vai embora; jamais arrepia.
E soprada no ouvido, desdenha flertando.
É mais febre que o amor; que com ela se contradiz.
Palavras da salvação, como ordem;
quando Seu exemplo não se ordenava.
Palavras de desculpas genéricas; na íntima ofensa.
De carne e osso; o abraço que não existe; morre nascituro;
Sem necessidade de ser compreendida,
num baú de cartas envelhecidas.

A podre palavra que não vale quase nada.
Por isso é tempo de retomar as palavras,
na insanidade que ela define.
Palavra do xingamento, do mal caráter bem querer.
Palavras desconectas dos embriagados.
O murmurar dos maltrapilhos, desculpas esfarrapadas.
A santidade evangélica dos infiéis.
É preciso as palavras dizendo grandiosas verdades;
mesmo em pequenas tendenciosas mentiras.
Palavras em frases jogadas ao léu.
Palavras no léxico incontestável
em sua gráfica histórica
e inconfundível tradução.
Palavras sem o arrepio demente dos iletrados.
Basta! Quero a extinção das palavras!
Quero que sumam do abecedário.
Essas palavras!
Dos boçais que inibem o significado
com suas letras indeterminadas
nos muros das cidades.

É tempo que as palavras precisam dizer mais.



quinta-feira, agosto 28, 2014

Dama




E se, de repente, olhar para mim:
Finja, odeie; ame de verdade.
Só não faça questão de ignorar;
como quem ignora um desconhecido.
Ponha a solidão no devido lugar,
senão alguém fará falta.

E seus olhos, nunca vi.

Nunca sorriu para mim
nesses poucos minutos
em que não nos conhecemos.
Não importa muito,
já andamos nos despedindo.

Para quem você olha quando precisa ir embora?

Não me deve nada.
Nenhuma desculpa.
Nem quero saber o seu nome.
Nem precisa me dizer as horas.
Nem qualquer conversa tola.
Não me deve.

Eu – em meu sonho – devo-lhe explicações:
De minha ausência.
Da minha insistência.
Da minha paixão.

Perguntaria a mim se tivesse me notado?
Pois esse encontro que nunca teremos
Carrega um tempo inútil da nossa história.
De você chegando e partindo,
Da minha partida sem nunca me ver chegando.



terça-feira, agosto 12, 2014

Os dias de hoje


Disperso, na relíquia do tempo, viajo para dias melhores.
A nostalgia que paira, reflete no limbo, criaturas felizes.
Era feliz aquele tempo e sabia.
O pé da fruta, do primeiro sabor, que eu não sabia o nome:
Bicho com fruta, fruta com bicho; ainda não matava.
Naquele tempo, do passado em preto e branco,
Tudo parecia mais colorido, ainda que aos avessos;
A vida tinha lá, em seus trejeitos, um tanto de dificuldade.
Chocolate, pão com requeijão; mistura da comida variada.
Tudo faltava, desde remédio até os canais de televisão na sala.
Mas eu era feliz, naquele tempo; coisas que a saudade traz.

O mundo anda tão distante, tão menos saboroso.

Ando me acostumando com o errado.
Aquilo que não dá certo,
com esquisitices alheias, as minhas.
Com a infelicidade, que de todo hábito,
É o pior.

E viajo, como quem foge mesmo, sem ser derrotado pela vida.
Ando sumindo, como quem olha a paisagem e parece não saber;
Não pensar em nada; ou quase; pois é impossível qualquer vazio.
Fico ali, olhando os carros diferentes, as pessoas que se matam;
A febre que devora, as doenças que se espalham; a guerra
A epidemia, o transtorno de todos; pois todos estamos transtornados.
Olho gente indo, gente querendo ir; gente com medo de ficar.
De assumir a vida, a vontade de abraçar, de dizer coisas boas.
A felicidade, como bem precioso, tem lá sua culpa na inveja.

O mundo não me pertence.

Pois, na chuva, da água poluída; o medo.
Ando me acostumando com o medo.
Com as bizarrices das pessoas; ou as minhas.
Com a infelicidade, que bate a porta;
E deixo.

E quero mais um pouco de tudo que o mundo esconde.
Que se esconde do mundo, as coisas mais belas.
As coisas lá do passado; ou presente, a relíquia.
Meu maior presente será a felicidade, dos dias; aproveitados.
Todos os dias!
Carpe Diem aos avessos, ad aeternum.











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segunda-feira, julho 07, 2014

Rei e o bobo


Sigo a pensar no caminho que não tive
O caminho do passado, feito e em vão.
Sigo, hoje, ontem, em qualquer direção.
Quem me fez e me faz? Será que vive?

Olho para qualquer mata, o deserto.
Qualquer rua vazia; beco, inferno.
Vão por qualquer lugar, nas horas.
Benção que me traz, para ir embora.

Última vez aqui, sabem, me perdi.
Cheguei como Rei, bobo ou príncipe.
O castelo rompeu, o povo benzeu.

A rainha de mãos levadas não me quis
Fui como quem nunca amou, mas tentei:
O cavalo, arredio, me julgou como plebeu.





Ciência dos abutrez

 

Sei que mudamos, nós nos olhamos tão aflitos.
Ficamos distantes, convencidos; tempo perdido.
Perdi você em alguma dessas paisagens, onde
Criamos tantos monstros, tantos pássaros;
Comendo enquanto voávamos bem longe.

Será que um dia você volta? Perdi a chance.
Como te perder, ainda que não queira mais?
Perder assim, sem nunca ter. Volta um dia?
Nem quero, mas existe um abismo de hoje.
Hoje acordei e me senti tão pessimamente livre.

Sei que mudamos, tantas horas que perdemos.
Nossas aflições, distantes, curvando-se no tempo.
Qual desses monstros ainda tanto incomoda?
Qual deles voa disperso quando estamos longe?

A ciência exata da desumanidade é criar respostas
Ainda que imprecisas de nossa próxima paixão.
Não sabemos como começa, nem de onde vem.
Só é certo que será outro um abismo de amanhã.




terça-feira, abril 22, 2014

A trama do décimo andar


Caiu de uma altura, estatelada. Caiu sem asas, jogada por si; vontade própria, sem qualquer intermediário. Caiu do décimo andar, traumatizada queda; para os ossos e para o restante do corpo. Os olhos olharam o horizonte, as mãos pegaram o ar, inegável paisagem maravilhosa, aproximando-se do tão longe. O asfalto no chão imóvel. Ela caiu por algum motivo contraditório, que as autoridades ainda restarão explicar. Eu vi tudo, como testemunha, sem querer; mas que na minha indecisão, sem tempo de chegar os olhos: o corpo que cai. De susto eu observei tudo.

Não era, dentro da minha percepção quase imaginativa, uma mulher feia. Nem estava numa torre, num filme qualquer de Alfred; uma donzela indefesa. Era uma mulher loira, de aproximadamente quarenta e poucos anos. Sem filhos, creio. Pouco sei sobre a mulher e saberei muito menos se não noticiarem nada sobre ela nos próximos capítulos nos telejornais. Em instantes as sirenes, bombeiros e policiais; médicos para caso de um milagre. Alguns ainda esperam um respiração ofegante, como que um corpo com vida, naquele chão ensanguentado. Mas não há vida, nem havia quando ela caminhava assustada rumo ao topo do prédio. Consciente ou não de sua decisão suicida.

Talvez tenha se jogado por causa de um amor não correspondido. Acho que essa probabilidade uma das mais desinteressantes, pois o amor, para a maioria das pessoas, passou a ser um passatempo dos menos intensos. Não existe mais sofrimento na falta do amor, pois o tempo, encarregado de curar tantos deslizes, também trabalha pelo bem do amor; que num lance infortúnio, no metrô ou no supermercado, traz o remédio. As pessoas não perdem mais a cabeça por causa de um amor. Perder o bom senso, o respeito; a dignidade. Mas a cabeça? Não, isso não. Ela não se atirou do décimo andar por causa de amor, tenho certeza. O policial olha bem de perto, os olhos esbugalhados e assustados da mulher.

Morreu por descuido? Talvez. Outra hipótese que projeto durante os segundos posteriores à cena. Que critérios eu teria para definir a morte daquela mulher se nem a conhecia? Não tinha critérios nenhum, nem deveria supor a morte como fuga. Podia ser descuido, penso mais uma vez. A mulher olhando para as nuvens que se formavam naquela tarde de Sol, e de repente: queda. Deixou filhos, maridos e uma cachorra acostumada a dormir no sofá da sala. Ela tinha cara de uma mulher rica, bem cuidada e perfumada; apesar de não ostentar qualquer joia. O policial isola o crime, como se o crime fosse um crime. Fotos e mais fotos animando a paisagem dos jornais impressos na manhã seguinte: alguns se apegam as imagens, outros as palavras.

Fiquei vários minutos sem palavras. Fiquei ali, como se fosse o meu corpo caindo daquela altura. Senti o medo da morte, senti o medo do prédio; que por alguns momentos parecia se sacolejar de grande euforia. Nem sempre algo concreto pode ser tão abstrato. O prédio como quem mantém o poder sobre a vida e a morte, em seu décimo andar; mais ou menos espaço relevante do coração, caso ele fosse humano. Mas ele não é. O prédio não têm pés, nem olhos; nem cabeça. Mas naquela hora, ou melhor, naqueles segundos; ele parecia vir em minha direção. Quer me esmagar também? Quer acabar com minha vida? Todos os outros prédios olham sem querer qualquer interferência, passivos diante do assassinato. A mulher continuava imóvel.

Quantos minutos o meu pesadelo? Quantos anos de sofrimento da mulher? Não sabemos, nem suspeitamos. A mulher morta, os policiais isolando a queda; o sangue, o desespero de todos aqueles que viram ou não viram a mulher se atirando do décimo andar. De qualquer forma, ainda que houvesse qualquer explicação, nada fazia sentido. Deixei a morte de lado quando vi de perto o que a vida pode fazer com as pessoas.

Um dia, uma noite; acovardei-me diante do prédio - antes daquela mulher - e para nunca mais.





terça-feira, abril 08, 2014

A hora


Que farei nessa hora, uma hora.
Tenho exato, a partir, ficar.
Uma hora, todo o tempo de uma hora.
Comerei o almoço.
Assistirei parte de sua estreia.
Farei nada, além da vida.
Tenho uma hora, que farei?

Olho para o relógio e ele parece parado.

Ligarei em uma hora, o final de tudo.
Pensarei, em cinquenta e nove minutos.
Decidirei, de agora, menos uma hora.
Que farei para passar esse tempo que demora?
Ficarei em silêncio (se puder),
Rir da vida, senão chorar, preso; ainda.

Olho pela janela e o relógio parado.

As cores também paradas.
Todos sentados em seus afazeres,
Mas eu preciso que uma hora, de agora,
Começará o acabar mais rápido.
Como sobreviver uma hora?
Considerando paradoxo terrível do tempo:
Quanto mais ele passa, menos eu liberto.
Mais ele passa, menos um pouco eu morro.

Olho para o relógio e é mais um dia que vai embora.















segunda-feira, abril 07, 2014

O desafio da própria morte

 

A antítese do passado, o futuro.
Que trás desse dia de luto
a insuspeita do tempo.
Pudera reverter as horas,
nascedouro de hoje a morte,
até o momento presente.
Foice de ponteiros desatentos,
correndo o inverso da carne,
em todo envelhecimento.

Que badaladas inflem a pele
Rompendo as rugas dos anos
chamando de volta ao corpo, os pelos.

E no retrato do recomeço,
a campana violada, onde velas,
despropositais, velarão as flores
murchas ao vento.
Ao contrário da morte,
diminui a experiência dos tormentos,
como parto desalento de tudo.

Renascer de novo ao ventre da mãe,
desconfortável ambos como estupro.
Nascerá em mim a conformidade dos anos,
como a vida que morre em minutos,
e sonhos que seguem a eternidade.
A tese do futuro, nesse poema translúcido,
desenvolve aos dias de glória da vida, o luto.



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A imensidão dos poemas

 

Perdi a imensidão dos poemas.
Aqueles, que rompiam horizontes.
Hoje, e quase indecente, voltam:
Retomam,
Repetem e
Desrespeitam-me.
Estagnam-se,
os mesmos gestos,
Numa única mensagem.

Não servem mais a nada.

Que construção lateja, então?
Nos sonhos do mundo?
Pois traduz, ainda, palavras
Criando-me na vastidão.
Qualquer mensagem,
Nem demais,
Quer leiam indecisos;
Os poucos que revejo.
Onde há deles em mim,
Está também o coração.

Mas não serve mais de nada.

Que rimas, poucas, fúteis,
onde transbordam músicas
de ontem, até hoje, os acoites
De uma recitação que nunca houve.






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terça-feira, abril 01, 2014

Comida de boteco e o azar do copo cheio

 

Antes de vocês de vocês chegarem aqui, eu estava bem acompanhado. Era uma mulher alta, cabelos negros e um senso de humor incrível. Ela foi embora depois de tomar uma bebida. Estou com fome, ela também estava. Vai acreditar que com a fome se brinca? Eu pedi dois ovos, aqueles coloridos. Pedi uma garrafa de cerveja também. Algumas vezes eu tomava vermute, mas hoje não era o caso. Ovo colorido é culinária de boteco. Quanto mais colorido melhor. Levantei da cadeira e deixei o copo na metade. Dá um azar danado uma coisa dessas, vocês sabem.

Viu bebum se machucar em via pública? Bebum tem santo forte. Anjo da guarda, guardião; sei lá quais nomes para a proteção. Quase todos os bebuns fazem a coisa certa: não deixam o copo cheio no balcão. Volto para beber o resto da minha cerveja. Que diabos fizeram com o meu copo? Estou marcado pela eternidade! Eu sabia que o destino seria cruel comigo. Um copo largado no balcão! Ninguém sai ileso a tamanha superstição.

Num canto escuro um grupo cantava um rock conhecido. Gostava daquele lugar por causa da música. Bebida gelada tem por toda parte, mas música boa? É quase um milagre divino. O barman se aproxima, nós nos conhecemos de vista, mas eu não sei o seu nome. Cinco anos frequentando o mesmo lugar e não fui capaz de perguntar o nome de que me servia. Que falta de consideração a minha.

“Qual o seu nome?” – Eu começo.
“Tá brincando?” – Ele.
“Tenho cara de quem está brincando?”
“Você bebeu um bocado”
“Eu reparei a pouco que não sei o seu nome.”
“Meu nome é José.”
“Prazer, José.”
“......”
“Meu nome é Carlos.”
“Eu sei que seu nome é Carlos. Também sei que é filho de Joelma e Francisco”
“Oras.”
“Quer que eu te leve para casa?”
“Não quero que me leve para casa, quero apenas terminar minha cerveja. Onde você colocou meu copo? Voltei aqui por causa do meu copo”
“Você chega aqui todos os dias e faz as mesmas perguntas.”
“Eu sei que venho todos os dias.”
“Mas não sabe que toma apenas um refrigerante, que você insiste em chamar de caçulinha?”
“Hã?”
“Depois pede dois ovos, os mais coloridos possíveis, como se a casca desse sabor diferente.”
“Como?”
“Depois reclama da música alta, dos guardanapos ásperos, da falta de fio dental. Não quer palitos de dente. Não sei qual motivo dessa exigência.”
“Isso é ultrajante.”
“Sua palavra preferida.”

Peço mais uma cerveja e não dou muita bola para aquele sujeito me dizendo barbaridades. A música não é tão boa assim. Nem posso dizer que prefiro fio dental. A cerveja está gelada, mas confesso já ter bebido cervejas melhores. É claro que não sou um especialista, mas tenho meus gostos pessoais. Refrigerante? O cara só pode estar brincando com minha cara. Nunca vi um cliente ser tratado daquele jeito. Não voltarei mais aquele lugar, é uma promessa.

Em relação a cerveja: Prefiro as inglesas. A música e a cerveja inglesa são as maiores conquistas da humanidade. Uma vez namorei uma garota de Londres. Ela falava mais ou menos o português, pois seus avôs eram de Lisboa. Existe sim grandes diferenças entre o português falado em Portugal do resto do mundo. A língua nos atrapalhou um pouco. Terminamos depois de alguns meses. Ainda sinto um pouco de saudade. Tenho certeza que seria feliz com aquela garota.

“Carlos, está chorando de novo?”
“Quem lhe deu essa intimidade?”
“Quer que eu te leve para casa? Não vou perguntar de novo.”
“Está tarde, vou tomar do mais uma.”
“Mais uma e chega.”

Ele me traz a cerveja gelada. Da um azar danado sair do bar sem tomar uma saideira. O sujeito me carrega nos ombros. Estou visivelmente embriagado. Não queria que meus vizinhos me vissem daquele jeito. Na minha idade, chegar carregado é vergonhoso. Ele me coloca na cama. Rezamos juntos, assim como ensinei meu filho. Ele me cobre, acende um abajur com luz amarela -  Tenho medo do escuro, tenho medo que Deus me abandone - Ele sai do quarto:

“Boa noite, pai.”


Aquele sujeito parecia realmente conhecer o sujeito que não mais se reconhecia.

quinta-feira, fevereiro 27, 2014

Lobo Mau


Não necessariamente me considero um assassino. Longe pensar que tenho qualquer prazer no meu trabalho. É tão comum histórias como a minha, que pensei inúmeras vezes antes de me sentar aqui nessa mesa, com papel e caneta na mão e começar a contar sobre determinados acontecimentos. Não existe nenhuma anormalidade em ser contratado para matar alguém. Profissão tão antiga. Acho que só perde para as prostitutas; tão essenciais quanto os matadores profissionais. Não me intrigava a situação que estava presenciando naquela casa. Estava mesmo era preocupado com a informação que daria para o meu contratante. Uma coisa não havia funcionado bem, ele precisava saber disso. Ou não deveria saber?  

No sofá, tranquila, a vítima. Ela sabe que eu tinha um plano macabro. O dinheiro já estava guardado, a arma engatilhada. Bastaria um tiro para que o serviço estivesse completo. Ele não queria qualquer prova, fio de cabelo ou foto. Não queria nada, apenas uma ligação minha confirmando a morte da garota.  Coisa de confiança mesmo. Não sei o nome dela, nem a idade. A maioria das minhas vítimas eu só sei o suficiente. Não é necessário saber mais do quê uma foto guardada no bolso da camisa. Nem sempre as informações são precisas. E se eu estivesse errado dessa vez? Embora nunca tenha errado. Sento-me no sofá. Estou de frente para a garota. Ela está amarrada. Eu continuo com a arma na mão.

“Quantos anos você tem? Quinze?”.

Como pode ter algum inimigo aos quinze anos? Poderia perguntar o nome da garota, mas isso começaria a caracterizar uma intimidade. Odeio ter intimidade com pessoas que vão morrer. A garota está assustada. Quem não estaria? Eu não fico assustado com a morte. Acho que, em muitos casos, é como um prêmio. Sempre estive do lado da morte. Meu pai também era matador, me ensinou muito. Nunca deixou um trabalho incompleto. Hoje os tempos são outros. Uma complexidade enorme. Os profissionais dessa área precisam de uma reciclagem. Apoio psicológico, às vezes. Nunca precisei de qualquer ajuda. Quer dizer: uma vez tive que matar uma pessoa: A curiosidade era que o contratante queria que ela fosse envenenada. Tive que fazer uma pesquisa, conversar com alguns amigos; até que cheguei numa conclusão interessante. O veneno utilizado foi um sucesso.

Voltando para a garota: “Você tem algum inimigo?”.

É difícil responder quando se está amordaçado. Mesmo assim continuamos mantendo contato. Ela respondia balançando a cabeça. Perguntei se os pais eram vivos – Ela poderia morar com a avó, por exemplo - Perguntei se ela estudava. Se ela tinha amigas. O principal: se tinha namorado. Para todas as minhas perguntas uma resposta afirmativa. Com a questão do namoro ela ficou encabulada. Ela tinha um namorado. E pelo visto era nossa primeira confidencia. Ninguém na família sabia. Somente eu. Um completo desconhecido. Pego a foto no meu bolso: era ela. Não tinha como errar. Pela primeira vez fiquei curioso em saber quem era o mandatário. Nunca quero saber, nunca é bom saber. Não é bom saber nada da vítima também, pois o pecado parece ser maior. Acham que, mesmo eu sabendo não ser um assassino, mas sim um matador profissional, ainda assim não estou pecando? Matar alguém por ódio, ou dinheiro, é parecido, sendo que para o primeiro o inferno é mais rigoroso.

Embora não acredite em céu ou inferno.

Disse para a garota que eu fui contratado por um homem, mas que não sei o nome dele nem onde mora. Coloco a arma na mesa novamente. Não pretendia usá-la, pelo menos por enquanto. Eu pergunto para a garota se ela iria gritar caso eu tirasse o esparadrapo de sua boca. Mais uma vez ela responde que manteria a calma, apenas gesticulando com a cabeça. Como eu sei que ela disse isso? Eu não sei, eu apenas acreditei que ela não fosse gritar. Cuidadosamente eu arranco o esparadrapo.

“É o Ailton?” – Ela começa.
“Quem é esse sujeito?”
“Meu namorado. Eu disse que estava grávida quando ele me largou”.
“Mas você está grávida?”
“Claro que não”.
“Ailton quer te matar?”
“Só pode ser ele. Ele brigou comigo por causa da gravidez”.
“Você teve a brilhante ideia de dizer que estava carregando um filho dele para ele não largar você?”.
“Eu estava desesperada.”.

Ailton era casado e bem mais velho. A garota na minha frente era muito bonita, mas era uma criança. Não sei que desejo incontrolável desses maníacos, velhos e endinheirados. Ela disse que Ailton disse que a amava. Ela acreditava no amor, tinha escutado uma música que dizia que o amor não tem idade. Que porra de música nossas crianças estão escutando? Eu continuo atendo no que ela está me dizendo: os pais realmente não sabiam de nada. Jamais permitiriam um namoro de uma menina de quinze anos (quase dezesseis) com um sujeito com quarenta anos de diferença. A conta não era bem essa. Nunca fui bom em matemática.

Ailton não faria uma coisa dessas, penso.

“Só sei que foi um homem, não sei se foi o Ailton”.
“Quanto ele pagou?”.
“Que interessa isso?”
“Quero saber quanto eu estou valendo”.
“Não dá para discutir uma coisa dessas. A vida não tem preço”.
“Mas você vai me matar por um valor, não vai?”
“Não sei se vou matar você”.
“Que justificativa tem para não me matar?”.
“Realmente não tenho justificativa nenhuma”.

Diria para a garota: Está correndo perigo. Que ela precisa informar a mãe e o pai que está sofrendo ameaças. Deve informar a polícia também. A polícia é essencial. Se pudesse, era melhor que mudasse de endereço. Também teria que mudar de escola. Esquecer aquela vida que ela estava vivendo. “Sua vida daqui para frente não poderá mais ser a mesma!”. Eu pego o telefone. O único contato que eu tinha com o contratante era um número. Liguei. Do outro lado a mesma voz me atende. Um “alô” rápido. Apenas um “alô”. Nada mais. “Alô?”. Não pergunto se é o Ailton, como disse; não me interessava. Então eu respondo convicto:

“Está consumado”.

Desligo o telefone e nunca mais falei sobre o assunto.








Texto 2 - Aguarde-me com sorriso


quarta-feira, fevereiro 19, 2014

O nu e o trem


O nu nem sempre é belo. Nu de homens e mulheres, quando repletos de realismo, pior ainda. Alguns gostam de contemplar a realidade. Eu prefiro a imaginação. Prefiro a ilusão. Por isso decidi ser cineasta. Quando eu era mais novo preferia a beleza escondida. Adorava imaginar como era a nudez. Adorava, portanto, mulheres que se cobriam com um recalque admiravelmente sensual. Mulheres que conseguiam esconder seus seios volumosos (ou não). Seus pelos sempre submersos. Tudo pode ser recriado, diferente do quê verdadeiramente é. Essa era a minha grande missão. A nudez, portanto, me tirava o alívio dos sonhos; mas me trazia, muitas vezes, a decepção da verdade.

Não fui um cineasta famoso, e pelos ventos que sopram, nesses dias mais quentes, jamais serei. Vivo de um dinheiro miserável do governo, benção magistral aos novos idosos que, como eu; nunca foram avessos ao trabalho. Sou representante de uma classe injustiçada. Assim como os professores, intelectuais e políticos. Todos nós somos julgados como viajantes do mundo, sem parada e sem trabalho. Cineastas são criticados por aquilo que os outros acham que eles têm; não pelo que eles exatamente são.

Não tenho nada, apenas uma história.

Abro a janela do trem. Ainda era de manhã e os ventos dessa hora renovam qualquer pessoa. Tinha chovido a noite anterior e com isso o matagal em volta dos trilhos tinha um cheiro muito característico e atraente. A brisa úmida chegou a molhar meus óculos (Acessório indispensável desde os meus três anos de idade). Na escola, depois de descoberta a miopia, sentia-me como um adulto inteligente ao passear elegantemente pelo pátio, afinal de contas o objeto era relacionado ao intelecto. Homens de óculos são os mais inteligentes, me disse uma vez uma namorada. Embora não acredite nisso hoje em dia, acreditei por um bom tempo. Acreditei que eu realmente era a melhor e mais poderosa pessoa do mundo, até que o mundo bateu à minha porta, abrindo sem meu consentimento; tirando o meu disfarce.

Aos quinze anos escrevi meu primeiro roteiro. Contava a história de um sujeito que manteria amizade com um camundongo durante anos. Trocavam confidências. Era complicado filmar um camundongo, eu pensava. Talvez tivesse visto coisas desse tipo apenas nos desenhos animados. O camundongo iria morrer envenenado. Veneno colocado pela mãe do protagonista. O que eu queria dizer com aquilo? Não sei. Algumas vezes queremos não dizer nada. Só pensamos nos enigmas e nas considerações de uma obra artística quando ficamos velhos. Críticos adoram esmiuçar um texto, um filme e uma música, tentando descobrir alguma coisa oculta – Eles podem ler esse pequeno texto e não acharão nada. Esse texto é como uma carta, ainda sem destinatário, que narra a minha ida, junto com minha esposa, ao encontro do meu filho.

Não haverá nada a ser explorado. Se vocês querem enigmas, sugiro outras espécies de obras. Crimes, sangue e violência? Estará longe daqui. Vejam a paisagem enquanto o trem se move. Existe algum mistério nisso tudo?  Imagino uma câmera, focalizando entre os dedos o melhor enquadramento. Que bobagem sermos aquilo que pensamos ser. Entrei na faculdade, mas não me formei. Continuo me achando um cineasta, ainda que não saiba absolutamente nada sobre como fazer um filme, como analisa-lo em todos os seus processos. Fui apenas um vendedor de produtos de limpeza. E dessa forma sempre estive perto das melhores histórias que um homem pode viver: as mulheres. Ainda que eu entrasse em algumas empresas, com seus truculentos barbados me oferecendo um cafezinho; era pelas mulheres, nas ruas e cotidianas, que eu sempre fui apaixonado.

“Você sabe que horas eles servem o almoço?”
“Posso perguntar”.
“Você nunca sabe de nada”.
“Faz anos que eu não viajo de trem”.
“Você é um medroso, isso sim.”
“Quem estava com medo de entrar no trem?”
“Não estava com medo, você sabe bem. Eu tive um pressentimento”.

O trem viaja mais umas duas horas até que as portas do restaurante são abertas. Com dificuldade de toda aquela trepidação, com a nossa já falida coordenação motora; conseguimos chegar numa mesa vazia. Pedimos os pratos. Eu me sentia como uma criança novamente. A última vez que experimentei uma comida servida num trem eu tinha treze anos (e ainda não usava óculos). Era complicado o movimento da mastigação. Também era para beber, conversar e desistir de conversar. O barulho naquele vagão era enorme, o que dificultava o entendimento entre mim e minha esposa. Por horas fingimos conversar. Fingimos conversar quando estamos vendo a novela. A televisão nos trouxe uma espécie de delírio quase esquizofrênico.

O trem para.

A estação estava vazia. Um vendedor de pipoca havia se escondido da chuva que tinha acabado de cair. Um cachorro vira-lata do outro lado, olhando para a vida como se nada estivesse acontecendo. Na verdade nada acontece. Nada acontece diferente de ontem. Nada diferente de hoje. Nada diferente amanhã. A vida é uma sucessão de acontecimentos previsíveis e ao mesmo tempo ignorados. Damos valor apenas ao que não conseguimos compreender, aquilo que supomos perceber. A verdade é que vemos a vida como a nudez: supomos ver os corpos onde há apenas as roupas.

Por isso gosto do cinema.




(Texto 1 de - Aguarde-me com Sorriso)