sábado, setembro 05, 2020

MORRE PIOR QUE NÚMERO

 

Morre um de nós, morre um qualquer cachorro. Nem cachorro é meritória qualquer humilhação. Morre um de nós, é como número perdido num cálculo aritmético. Cachorro não é gente, mas é viva criação. Número é criação, mas não é gente. Morre um de nós, joga-se um punhado de terra no caixão fechado, e tudo cai lentamente num buraco frio e úmido. O cachorro acompanha os desconhecidos fúnebres e o adeus ao punhado de carne e ossos: para o mundo, ali se vai mais um número.
Da integrante procissão, homens e mulheres choram pelo morto como se tão querido fosse. Alguns, de fato, amavam e adoravam o falecido. Mas parte da galera está em convenção que exige o cortejo, no adeus e na oração. Lembram de fatos engraçados do personagem central nessa drama, riem sem graça sabendo quem um dia serão também cortejados nessa tragédia. Jogam flores, jogam velas e jorram lágrimas. Campana de um número, endereço imoral da nova morada.
Morre um de nós e o tempo definitivamente não pára. Pois não pára o tráfico, nem o tráfego. Não pára o padeiro movendo a massa crua, nem os médicos manipulando os órgãos soltos no corpo do operado. Nem o modus operandi da existência. Não pára o depressivo em sua angústia, nem o jovem vivo na depreciação do corpo. Nada muda quando a gente morre, nem quando um cachorro morre. Nem quando matamos o tempo, nada muda, exceto os números.
A fatalidade pitagoriana é sermos uma sequência infinita, sem zero e sem vírgula. Somos completos, mas nem sempre íntegros. Somos números na cotação diária do dólar. Somos miligramas da infiltração ridícula da droga. Somos espasmos que adicionam, subtraem, multiplicam a vida no cotidiano. Somos a divisão daquilo que ainda não sabemos.


16.02.2020

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