quinta-feira, novembro 08, 2018

Aquarela


AQUARELA[1]


Sabe aquele tipo de música que te passa uma paz enorme, mas ao mesmo tempo tem uma tristeza contida em suas palavras no enredo que ela apresenta? Pois é. Uma dessas músicas é “Aquarela”, do Toquinho. Percebendo a música com sua docilidade, com a imagem que ela forma, temos a impressão de uma suavidade colorida, coisa infantil e sem qualquer maldade. São passos sendo construídos num papel em branco, onde as cores acabam fazendo com que nossa imaginação caminhe por situações felizes e libertadoras. Vejam vocês que o primeiro verso da música é exatamente o começo de tudo daquilo que podemos chamar de vida: Um papel em branco e um sol amarelo. Já imaginaram a importância do Sol em nossa existência? Uma folha em branco, um sol surgindo, surgindo também a vida. Uma folha qualquer, uma folha que pode ser a vida de qualquer pessoa, ali nascerá a vida. E como uma canção que carrega tantos elementos lúdicos, brilhantes e numa voz tão suave pode causar alguma tristeza? Chegaremos lá.

“Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo”. Tudo começava com a vida, como eu disse. Não há vida sem a nossa principal fonte de energia. O sol ali no papel branco era tudo que precisamos para começar nossa trajetória. Flores, natureza o dia; tudo virá depois do Sol, por isso ele é desenhado primeiro. Depois da energia do Sol o que uma criança pensa sobre a sua própria vida? Não seria sua casa? A segurança de sua casa? Precisamos de segurança. Uma casa seria esse lugar seguro. Mas não tão seguro que poderia ser visto como um castelo. E essa casa é tão fácil de perceber quando somos pequenos, não importa se grande ou pequena, confortável ou não. A nossa casa sempre foi o nosso castelo: “E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo[2]”. 

Na construção da vida no papel em branco, temos o simbolismo da nossa roupa, ainda que o autor diga apenas sobre a luva, talvez esteja se referindo na mentalidade infantil de que ter uma proteção para as mãos seja essencial: “Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva”. E mais além, ainda nesse simbolismo sobre segurança diz que pode fazer chover (o autor tem o controle sobre tudo), mas que pode fazer algo para se proteger se isso sair do controle fazendo um guarda-chuva: “E se faço chover, com dois riscos tenho um guarda-chuva”. Já imaginou que poder maravilhoso é da nossa infância que vê os perigos do mundo, cria seus próprios monstros e ao mesmo tempo a forma de combate-lo? E falando de imaginação, ele passa para a outro verso dizendo que não é preciso muito na vida de uma criança para curtir a vida e a liberdade, já que basta um “pinguinho de tinta” para voar no céu: “Se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel, num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu”.

Livre a imaginação toma contornos mais desenvolvidos na fase adolescente. Então não temos mais a criança voando, mas um jovem com ambições maiores. Vemos isso quando ele diz que a imaginação o faz voar uma imensa curva, passando por cidades distantes: “Vai voando, contornando a imensa curva norte-sul, vou com ela viajando Havaí, Pequim ou Istambul”.  Os desejos então aparecem, quando não temos mais a versão infantil de quem pinta num papel em branco, as palavras como “beijo”, “avião rosa e grená”, que pisca e brilha e que parte lindo com local para pousar: essa inquietação pelas descobertas do mundo se tranquiliza com a descoberta do amor, da paixão, da relação amorosa: “Pinto um barco a vela branco navegando, é tanto céu e mar num beijo azul, entre as nuvens vem surgindo um lindo avião rosa e grená. Tudo em volta colorindo com suas luzes a piscar, basta imaginar e ele está partindo, sereno e lindo e se a gente quiser ele vai pousar”.

A satisfação da vida chega na maturidade, quando o ser consegue ver na folha em branco a oportunidade da conquista. Já não é mais um avião, nem gaivota e nem céu. Ele está dizendo agora que o mundo pode ser conquistado por um navio, ou seja, mais lento e mais seguro dos sentimentos[3]: “Numa folha qualquer eu desenho um navio de partida”. A simplicidade da conquista se depara com a necessidade de ser grande, de conquista: ao mesmo tempo a felicidade é beber com amigos é também dominar o mundo em sua volta: “Numa folha qualquer eu desenho um navio de partida, com alguns bons amigos bebendo de bem com a vida. De uma América a outra consigo passar num segundo, giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo”. E nessa disputa sempre existe uma desilusão, pois não conseguimos conquistar o mundo, nem conseguimos mais sonhar com a liberdade das coisas simples, é uma barreira que nos prende ao presente: “Um menino caminha e caminhando chega no muro”. Há sempre uma barreira mais ou menos intransponível para que toda nossa felicidade seja conquistada. Quando conseguiremos evoluir diante da situação se o futuro caminha tão depressa? “E ali logo em frente a esperar pela gente o futuro está”.

Então, nessa última parte entra a parte mais bonita e sentimental da canção. Afinal o que é o futuro? Primeiro o verso: “E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar, não tem tempo nem piedade nem tem hora de chegar, sem pedir licença muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar”. O futuro é nosso único tempo inquestionável: vivemos nossa vida para bem morrermos, como diz um provérbio budista. A vida não conseguimos pilotar e a morte chega sem piedade, sem hora nem local, a morte muda nossa vida; e com ela somos convidados a rir daquilo que aproveitamos ou chorar pelo que não fizemos.  O autor então diz a frase conhecida de Horácio[4], mas de uma maneira poética, abrasileirada; bossa nova. Não adianta ficar pensando muito na vida, pois ninguém sabe o que vai acontecer, a única certeza é que construiremos nossa história (passarela de uma aquarela) e um dia vamos morrer (descolorirá): “Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá, o fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar, vamos todos numa linda passarela de uma aquarela que um dia enfim: descolorirá”.

Enfim, faz o resumo da vida, e que as coisas morrerão no final: O sol, o desenho no papel, cinco ou seis retas, o castelo e o mundo, tudo na nossa vida um dia descolorirá:

“Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo, que descolorirá. E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo, que descolorirá. Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo, que descolorirá”




[1] Antônio Pecci Filho Toquinho / Vinicius De Moraes
[2] Uma construção mais abstrata do que a de Vinícius de Moraes, quando dizia: “Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada. Ninguém podia entrar nela, não; porque na casa não tinha chão...”
[3] Lembrando que uma das interpretações do “mar” é sentimento. Em algumas escolas esotéricas, quando Jesus andou sobre as águas, ele estava dominando na verdade os seus instintos.
[4] Carpe diem