sábado, setembro 05, 2020

ELE, ANSIEDADE.


Um quarto pode ser o cenário. Mas entendam: é muito maior que um quarto. Pode ser um supermercado. Pode ser um colégio. Pode ser uma cidade. Então, no quarto onde estou tem uma cadeira de madeira. Ela é desconfortável. Tem também uma mesa, nela um corpo d´água e um pedaço de pão num prato. Não suporto a idea da morte chegar pela sede. O pedaço de pão não é novo, nem velho. Do lado onde estou não tem janela, mas tem uma porta trancada. Na verdade eu não sei se ela está trancada. Estou sentado na cadeira olhando para frente. Uma parede também sem janela do outro lado. Às vezes estou deitado no chão, que é duro e frio. Nesse momento me ponho a olhar para o teto que me aprisiona. Na maioria das vezes estou desnudo. Mas por isso não sinto vergonha. Sinto uma porção delas, mas não por estar nu.
Do outro lado do quarto eu vejo meu oponente. Ele tem uma fisionomia estranha. Parece uma pessoa conhecida. Uma pessoa que há muitos anos me acompanha. Mas não sinto uma intimidade. Ela está do outro lado do quarto, andando de um lado para o outro. Às vezes ela olha para mim fixamente, dizendo coisas que eu não consigo entender direito. É uma voz que não sai de sua boca, mas que chega direto aos meus ouvidos. Ele gesticula, esperneia, quer me bater. Mas quase nunca se aproxima. Mantemos uma distância segura. Uma barreira no tempo e espaço, o presente. Eu tenho água, ele não tem sede. Eu tenho pão, ele não tem fome. Eu tenho sono, ele continua caminhando desesperado de um lado para o outro como quem carrega todas as dores do mundo. Eu consigo horas de sono, mas é como se ele acordasse com o cansaço de uma noite de trabalho.
Ficamos olhando um para o outro por horas e horas. É uma eternidade. Ele pode vir em minha direção; passar por mim, sair pela porta. Eu posso ignorá-lo, sair sem qualquer medo. Mas parece não existir nenhuma escolha. Eu tenho dúvidas sobre conseguir caminhar sem que ele perceba. Tenho pavor de vê-lo saindo daquele canto e tomando como seu todo o quarto. Tomando minha identidade, meus sonhos e meu nome. Tomando minha cama, minha televisão, minha música e meus livros. Ele pode tomá-los, destruí-los; numa fogueira bem no centro desse quarto. Ele não sai do lugar, mas toda vez que eu pisco meus olhos, ele parece se mover em minha direção. Ele tem desejo ardente de ser como eu sou, e eu acabo sendo o que ele é.
Quando sinto-me exausto ao extremo, meu corpo desaba. Um sono rápido e um esquecimento das coisas que eu não vivi, mas tenho medo. Ele é a preocupação das coisas inexistentes. Ele é minha mente explorando um caminho que eu não reconheço. Ele é meu dinheiro que queima debaixo do colchão. Ele é minha embriaguez em meu desequilíbrio em não conseguir andar em linha reta. Ele é meu medo absurdo de coisas absurdas de uma grandeza ainda mais absurda. Ele se transforma em toda culpa do mundo em mim por coisas que o mundo sequer sabem existir. Ele toma o quarto e me sufoca, pegando o meu pescoço, fechando meus olhos; tapando meus ouvidos. Ele detona o meu peito, deixando um vazio corrosivo que vai se multiplicando pelo corpo, minando meus sentidos, minhas pernas e minhas mãos.
Com um empurrão eu afasto aquela estatura robusta, um corpo formado de mim mesmo, em meu reflexo contestador. Procuro ar entre as frestas da porta. Procuro romper aquele olhar que nos mantém conectados. Cada um de um lado do quarto. Sei que ele estará à minha espera, mas sei que cada vez mais que nesse enfrentamento ele terá mais medo de mim do que eu dele. E a cada dia que deixá-lo longe da minha água e do meu pão, mais dias ele passará despercebido. Ele será forte, mas jamais tomará meus pensamentos. Ele continuará no canto do quarto, no supermercado; o enfrentarei com o mesmo olhar assustador, pois o que nele me dá medo; em mim também há algo amedrontador para ele.
Minha vontade, minha vontade em abrir a porta.

27.02.18

Nenhum comentário: