sábado, dezembro 10, 2011

PÁGINA 09

‎"Morre mais um instante com os olhos cansados. Quem o reconheceria com aquelas roupas rasgadas e olhos tão profundos? Ninguém. Sequer a mãe, tão cheia de afeto e carinho, soube que naquele cheiro insuportável se escondia seu único filho, o mais querido...." - pg.1

sexta-feira, dezembro 02, 2011

A porta fechada

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A porta e a tinta descascada.
Mostra a casa abandonada.
Fria, suja, as ruínas: solitária.
E bato e ninguém ouve.
Mas se movem, percorrendo
a nossa imensa memória.
Houve alguém um dia?
E a porta e o trinco
alguém silencia.

Bato até os braços cansarem.

O outro lado, o vazio enorme.
Quem de nós decidiu tanto
sobre nossa pavorosa vida?
Os planos expostos, a ferida
exposta; trancada, deprimente.
E bato e ninguém me ouve.
Houve alguém um dia,
mas e o trinco e a memória:
Alguém silencia.

E os abraços finalmente se cansam.
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quarta-feira, outubro 19, 2011

Numa dessas noites de chuva

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E te cobram, a densa força do pecado
um erro nada original, bastardo; penso.
Come a maçã, morde, assopra e beija:
A mulher dos seus dias, nua e verdadeira.
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Penetro, abstrato: nas ruas carros passam.
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É dia de chuva, mas a janela fica aberta.
Quem, em olhares santos; vê o que deve?
Cansada, fria; relaxa, mas nada devora:
Tantos homens e mulheres que passam.
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Eu me alojo. Eu me renovo; eu me desespero.
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É minha a sua mulher? Ou vice-versa?
De ninguém, ela repete a si mesmo
quando no espelho enfrenta o que sobrou.
E o pecado de ambos, num só recai:
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Cruz do choro, da solidão e de tristeza.
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O dia é de chuva, mas a janela fica aberta.
De ninguém, ela repete mais uma vez,
recebi qualquer beijo, de vingança ou ódio.
Eu me alojo. Eu me renovo. Ela se angustia.
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Mas seu choro não é remorso, é desespero.
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Em um cotidiano qualquer.

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A herança é o fim do mundo: o presente.
O que mais quer, desisto hoje, para sempre.
Vamos tomar uma bebida?
Seguro o copo com as duas mãos:
- A bebida está quente?
A vítima dorme nos meus braços, ainda.
O perfume de ontem, hoje cheiro insuportável.
Os cadáveres que abominam os abutres
apodrecem para o resto da vida.
Seu presente hoje: o fim do mundo.
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O mundo de hoje parece insuportável.
Desisto para sempre de tomar uma bebida.
Vamos falar sobre cinema?
Seguro seu braço com as duas mãos:
- Está indo embora?
O cadáver dorme nos meus braços, há vida.
Os abutres insuperáveis sobrevoam minha morte.
O fim do mundo, que resta do meu cheiro,
apodrece o que é o meu presente.
Vamos beber algo e esperar o fim do mundo?
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terça-feira, outubro 18, 2011

Flores do seu jardim

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Você não quer saber, mas sua frente,
flores em preto, jardim quase morto.
Ouço o som dos insetos, deteriorados;
querendo, o mais rápido, seu corpo.
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Tão vespas; moscas varejeiras:
Abelhas dos estrumes da vida.
E lótus negro de uma chuva densa.
Os corpos se lambuzam na lama.
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Olhe para mim: quer dizer algo?
A língua enrolada, enroscada; fútil.
Dizer algo não diz nada, quase sempre.
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E os bichos vão embora, cansados.
Do seu torso, infiltrado e enlameado.
O jardim morre, como num gozo, dócil.
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quarta-feira, agosto 10, 2011

Carta

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A proposta, enfim, foi aceita.
Recebi hoje, em letras concretas.
Destinatário com nome incompleto.
Remetente também desconhecido.
O assunto é novo, mas diferente.
Estarei no horário marcado,
com minha melhor roupa, e perfume.
Já é meu dia, chegou na hora certa.
E nosso encontro, marcado há tempo;
desde meu nascimento, pela vida.
Olhava para o futuro e te encontrava,
mas não tinha coragem, menos motivo.
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Hoje ainda não tenho, mas aceito.
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Li todas as linhas, o absoluto.
Já me disseram tudo que está escrito.
Todas as pessoas sabem disso,
principalmente as mais velhas.
Eu sabia, mas não queria pensar nisso.
Agora não posso, é tão perto e tão óbvio.
Não escaparei, nem mesmo pretendo.
Dormirei tranqüilo esperando o outro dia.
Como diz a proposta: não existirá mais.
E lá, nas entrelinhas, diz que eu posso;
em qualquer momento, recusar.
Mas eu olhava o futuro e sempre esteve lá.
Não tinha coragem, mas agora tenho motivo.
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Amanhã não tenho mais.
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terça-feira, junho 14, 2011

Eu silencio (O seu silêncio)

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Amante dócil das frases soltas:
Gosto de ti quando ri, solta.
Gosto mais quando não me ignora.
E me pergunta coisas fáceis,
e diz que é mentira quando absurdo
(mesmo o absurdo sendo verdade).
E repreende minha loucura,
e sorri da minha tristeza,
e me adverte sobre o caminho
(Não me quer louco, triste e perdido).
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Amante inexistente, eu andei pensando
em você muito perto, bem perto.
Vindo pelo corredor, entrando aqui
onde eu gosto de te ver (ler).
Não diria nada.
Também não há nada para dizer.
Talvez uma frase solta, sem sentido.
Nossa vida, ultimamente, tem mesmo
pouco sentido.
Um beijo tímido, outro não.
Iria rir também de ti e suas loucuras.
Viveríamos instantes,
o mínimo é o suficiente, sempre.
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Mas não me venha, amante;
dizer-me coisas indecentes.
Da minha razão pelas coisas,
da minha indecisão sobre a vida,
da minha ansiedade.
Não diga nada, por favor.
Quando não há nada a dizer.
Gosto quando não me ignora,
Amo quando não me condena.
E louco, perdido ou triste,
não importa;
quando sua frase solta,
não diz a nenhuma verdade.
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sexta-feira, junho 10, 2011

Sonho perigoso

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Hoje aquele sonho desprevenido.
Estava acordado, zonzo; febril.
Estava com fome, mas não era fome;
nem sede, nem tristeza; nem morte.
Não era nada me fazendo.
Não era sua mão; nem seu lábio.
Nem dinheiro. Nem carros buzinando
evitando meu atropelamento:
E os braços e pernas, quebrados;
enquanto sonhava.
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Sonho perigoso de sonhar acordado.
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Não era um pesadelo, visto acordado.
Era delírio das coisas no seu devido lugar.
Estava o caos, instaurado o caos.
Ruiva brancura da noite,
visita a cama; o doente; o febril.
Inconseqüente eu sonhava.
Não era a mão, nem os lábios;
nem a língua; nem os braços.
Era a grama molhada, impaciente.
O grama de barro atolado
no calçado, na calçada; eu correndo.
Petrificado, preso; sonhava.
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Sonho da vigília, do morto no caminho.
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E a escuridão dos dias, do andar corrido;
não me faz sonhar acordado, nem lábios.
Nem vida surgindo do barro, e a língua.
Era o caos decifrado, na brancura da vida;
da ruiva grama da noite; a minha fome.
A mão que aparece, no sonho acordado;
é minha mão vazia.
Não é lisa, nem dócil; nem quebrada.
Era a grama queimada, a febre.
Era a vida correndo solta;
a falta de censura; era o pesadelo.
Era a falta da vontade, do desejo.
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Sempre foi perigoso meu sonho acordado.
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quinta-feira, junho 09, 2011

Lugar Errado

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Impressão que tenho desse lugar ideal:
Estou preso e esquecido, enfim.
Tenho certeza que aqui o relógio erra.
E a passagem da vida muito mais.
Esse lugar, pintado em brasa;
É do meu inimigo da vida.
Dos tubarões famintos, mortos.
Do deserto sem grito, o frio.
Da floresta sem fome, quase extinta.
Onde tudo parece tão igual.
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Os dias são iguais, imensamente iguais.
Ontem e o hoje, conectados ou não.
A sucessão dos passos, de sonhos.
Invariável série de ações:
Dormir, acordar e morrer.
A continuação das coisas,
prosseguimento das dúvidas e
prolongamento da dor.
Onde tudo parece não ter fim.
Os dias que acabam em sua imensidão.
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Ontem e hoje, tão intensos.
Horas que viram noites e
sentimentos em solidão.
O lugar ideal, onde preso;
é o tempo que passa esquecido.
Dormir, morrer e acordar.
Numa continuação de dúvidas
Sobre a floresta ou o deserto;
Se vale a pena, onde tudo igual;
Esse lugar para continuar a viver.
Esse lugar que parece tão ideal.
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sexta-feira, maio 27, 2011

A verdade curiosa da mentira

Ontem me deparei com uma questão curiosa. Na verdade é uma questão que há muito tempo vem intrigando o pensamento filosófico. Tudo começou quando li uma teoria sobre a mentira, que, resumidamente seria uma distorção da verdade. Dizia o texto que para conseguirmos maior eficiência da mentira era necessário conhecer primeiramente a verdade. O ruído da informação era a grande chave para uma boa mentira. Assim, a mentira é uma forma de interpretação enganosa de uma verdade.
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No entanto, o texto não esclarece a tal questão que me pegou de surpresa: afinal o que é verdade? O problema não surgiu agora, mas é proposta desde o surgimento do pensamento filosófico, lá no longínquo mundo helênico. Dentro das inúmeras teses, dos infinitos devaneios; eis que surge a descoberta fundamental; um parecer sobre o caminho da verdade: o homem é a medida de todas as coisas!
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Considerando que correta a interpretação, devemos supor que a verdade nada mais é do que uma visão subjetiva das coisas reais. A realidade é; enquanto a verdade apenas existe. A realidade é abstrata, eterna, objetiva e completa. A verdade é a interpretação, a leitura; a manifestação do que nós, como seres humanos, conhecemos da realidade. Todavia, esse conhecimento é fragmentado e, muitas vezes distorcido. A verdade é momento em que nos aproximamos da realidade, mas em si; apenas é sua resolução; mas não a correta manifestação da existência.
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Como relativista de carteirinha, apresentada sempre que entro numa discussão; devo dizer que acredito que realidade seja absoluta, mas não na verdade. A verdade, em seu caráter universal, é sempre relativa. Quanto mais suposição da verdade se aproximar da realidade, maior será sua correlação com o que é real. O inverso, quanto mais uma verdade sair do centro da realidade, de sua órbita; menos real ela será; portanto será a mentira. É nesse ponto que acredito na teorização de que a mentira só é possível pelo prévio conhecimento da verdade. Só podemos supor o irreal quando nos deparamos com o real; mesmo que precariamente.
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A história ainda diz mais sobre a verdade, ou sobre seu conceito. Lá pelos lados da Judéia, a verdade é posta numa discussão entre Pilatos e o filósofo Nazareno. O que é a verdade, pergunta o poderio humano do romano na virtude do poderio metafísico do profeta. A resposta não existe, simplesmente. A resposta é que o conhecimento da verdade é a chave da libertação. O que vale a definição de que a mentira, portanto aprisiona. Conheça a verdade e ela o libertará; conheça a si mesmo, nos Delfos. O homem continua sendo a medida de todas as coisas.
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A iluminação dos tempos modernos trouxe a definição da verdade como o observável, aquilo que pode ser conduzido, repetido e analisado. O positivismo da verdade descobre as coisas pelo que elas não podem ser; não o que elas realmente são. A verdade do que é “água” é a manifestação lógica de que ela não pode “fogo”, por exemplo. Conhecemos a água em sua formulação, e isso para a ciência do nosso tempo, basta como verdadeiro. Mas mensurar a água pelos elementos de sua composição é a pueril verdade relativa do concreto; mas não a maturidade absoluta do abstrato. A água pode ser vapor, pode apagar o fogo. O conceito da água é superior ao elemento químico.
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Mas é correto que a parte conhecida da “água”, o seu elemento químico, aproxima-se da realidade, assim se tornando uma verdade relativa a uma mentira relativa. Ao sentenciarmos que o fogo e a água são a mesma coisa, estamos nos aproximamos de uma irreal observação de elementos conhecidos, saindo do centro da realidade e nos prendendo aos fios estática mentira. Assim a verdade, ou o conhecimento relativo da verdade, é a única maneira da verdadeira libertação.
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A conclusão da mentira é que ela é tão verdadeira como a própria verdade, mas existe uma diferença básica entre as suas opiniões, ou seja, nossa subjetiva interpretação do que é objetivo. Enquanto aquela se aproxima da realidade, atingindo a liberdade e a universo da existência dos seres, esta aprisiona no isolamento egocêntrico do pensamento humano.
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sexta-feira, abril 08, 2011

Risadas no Recreio!


O mar repulsa dores:

Enfim o pesadelo em verdade.

Que liberdade ele queria?

Isso ninguém sabe.

E os tiros, e a espuma;

E a baba de ódio como onda.

Que raiva ele tinha?

A cabeça a gente manda,

manda no dedo do gatilho.

Mas, às vezes, perde da sanidade.

Haveria sonho?

Todas as vítimas tinham,

estavam em seus futuros,

carregados de esperança e livros.

Tiros e tiros: esmo.

Escolhas aleatórias ou não.

Isso ninguém sabe.

Crianças do futuro também incerto;

Mas de luta, de coragem.

A coragem dele era outra:

Era covardia.

Ridícula, louca e inútil.

Se ele tinha sonho, se ele tinha problema;

Se ele tinha medo, se ele tinha fome.

Se ele tinha.......não tem mais.

E ninguém vai saber:

Ficou com ele e seu silêncio em suas dores.

Sua história resumida em seus passos

Dentro da escola.

E as crianças?

O mar repulsa as dores:

Tornaram-se heróis de verdade.

Eles fizeram história, sem saber:

Caminhavam também pela escola,

mas tinham outras idéias, outros amores.

Tinham outro valor da vida:

Valor que nos contemplamos agora;

e, mesmo no silêncio de agora,

preenchem a vida as lembranças

de suas risadas:

e da tragédia o eterno recreio é o que

verdadeiramente importa.

E isso todos nos saberemos.



sábado, março 26, 2011

Confesso: vivi.

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Confesso: vivi.

Não foi fácil, decido sempre.

Um copo na mão, outro na mesa.

E o papel sem nome definido,

Sem planos e sem amor.

Mas, mesmo neste instante, vivo.

E a paisagem mudou.

A janela não é mais a mesma,

E o pingo de chuva que escorre;

Mata aos poucos o tempo.

Mesmo assim, vivi.

E se tenho tanto ainda para confessar,

Farei-o lentamente,

Como revivendo cada instante,

Cada pesadelo e cada alegria.

Uma tela repleta de sons e imagens,

O filme da minha vida

Passando lentamente,

Num chroma key instantâneo

Sem alegria; alegremente.

Confesso ainda: vivi.

E foi tão difícil continuar vivo.

Sem planos e sem amores;

Sem a janela por onde fugir,

Sem a porta e sem o letreiro:

Aqui jaz!

Não é fácil,

Mas vivo.

sábado, março 19, 2011

Texto Introdutório – Questão filosófica: A batalha entre o Céu e a Terra!


Dentro de mim uma batalha se instaura. Parece uma batalha antiga, mas não eterna. A briga que surge quando me vejo no espelho; quando percebo o que parece ser a questão de toda minha existência. Na imagem dois personagens. Dois símbolos contraditórios. Ali, os dois ícones revivem a história, desde os tempos antigos até os dias de hoje. Caim e Abel[1], se misturando na imagem refletida.

Em mim a ciência da concepção da carne e a consciência do espírito criado. Dois irmãos que brigam em minhas escolhas. O que eu sou afinal? De onde eu vim? Para onde eu vou? Nenhum deles consegue responder ao certo. E os dois continuam brigando pela verdade. Ou vivo como Caim ou mato-me como Abel[2].

Afinal, quem em mim é eterno? Haverá essa eternidade ou é a sensação de conforto que tanto buscamos. É confortante saber que nada acaba aqui, mas e a verdade? Criamos Deus ou ele nos criou? Enfim, os dois irmãos ditando a regra entre a crença e o ceticismo, entre o mundo material visível e o invisível mundo espiritual.

De repente, diante do espelho; os dois irmãos desaparecem. Ali eu percebo que sou único, não o único. Existem milhares de pessoas por perto, seus barulhos, vozes e cheiros. Mas não existe no meio de tantos deles igual a mim. Todos sofrem consigo mesmos como eu sofro diante de minha imagem dilatada? Sofro por não saber qual a vida devo ganhar[3].

E mais uma vez os dois irmãos reaparecem: eles representam meus dois pensamentos sobre o mundo, sobre quem eu sou. Não posso detê-los. Eles sempre aparecem com a mesma questão, com os mesmos argumentos. Mas não definem suas respostas. Nenhuma dessas visões, em mim; chegam perto do que considero a realidade.

Caim matará Abel sempre? Qual deles eu quero como assassino? A sensação de Caim, o profano; ou o poder de Abel, o eterno? [4] Caim, que é minha vida material; minhas conquistas, o meu mundo atual; mata todos os dias Abel, minha vida eterna; eu no mundo espiritual. Este mundo eu não reconheço com facilidade, e aquele eu sei o que quer.

E a batalha que parece guerra, me dá uma única diretriz. Responder essa questão é definir o rumo de tudo que eu quero, de tudo que eu preciso, de tudo que eu sonho; quais serão minhas conquistas, o que será a felicidade. Nessa guerra, em que aspectos físicos e espirituais se confundem; devo escolher se sou um ser espiritual em carne ou a carne em espírito?

A noção primária de todas as coisas: onde eu estou nesse tempo e espaço? Num primeiro instante parece que sou esse corpo, que sente fome e sede. Sente desejos. Mas no resplandecer do corpo vejo-me muito maior do que tudo isso que penso ser agora. Devo mesmo ignorar a sensação de que sou mais do que o que me vejo agora? [5]

Ao certo, parece que a convivência da vida me faz desse jeito. A questão que agora pouco me afligia, some. Mas é por um breve espaço de tempo: quando as coisas do dia-a-dia acontecem, desisto de pensar no que eu realmente sou. Mas, de repente, fico paralisado com a questão: Sou espírito que possui um corpo ou um corpo que possui um espírito? E a guerra, e os personagens, nunca desaparecem.

É conveniente vivermos a vida do mundo, sem pensar o quanto podemos nos transformar[6]. É mais fácil esse caminho. Decidir que devemos continuar levando a vida, que por si já basta. Mas não quero as coisas fáceis, quero novamente me olhar no espelho; quero me rever diante dele: quem eu sou afinal? Que conhecimento pode me responder?

Talvez a lógica, logos. Talvez o oposto, Lúcifer. Conhecimento diferenciado entre a crença e a ciência. Saber é muito diferente de acreditar. Por isso sabemos pela ciência e cremos pela religião; e ambos vivem em lados apostos. Quem não quer conhecer a si mesmo, acaba de uma só vez com a charada: a mentira, no entanto, não liberta. “Ó homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo”[7].

Muitas dessas respostas comprovadas, determinadas e positivas não respondem parte de minha dor. Aliviam, decidem. Mesmo quando é o inverso do que esperamos: a ciência não quer deixar dúvida. Mas acaba deixando. Acaba por não responder algumas lacunas que se formam: nós somos maiores que a ciência e a religião, precisamos de mais.

No espelho a metáfora continua. A briga entre os dois irmãos que podem responder que lado eu quero ficar, que lado eu quero percorrer para achar as respostas que me irão satisfazer. A advertência velada para Caim, que decide por um caminho longo que agrada a si mesmo; mas que não é a representação do que o mundo quer. Ou advertência direta a Caim, que vive o mundo visível; fazendo aquilo que é gostoso[8], aquilo que parece contentar todo mundo. Faço aquilo que eu não quero apesar de querer aquilo que não faço, Paulo de Tarso traduzindo toda essa minha angústia em sua frase célebre das Cartas.

Abel não agrada ao mundo, mas mapeia sua felicidade eterna. Caim se satisfaz como mundo, mas sua contemplação é transitória. Caim, que é feliz; inveja Abel. Por essa inveja o mata. Qual a razão desse desgosto com o irmão? Qual a razão do ciúme doentio? Caim mata Abel por esse motivo: eterno versus transitório. E esse o símbolo mais disfarçado em nós, real e provisório se digladiando. O corpo contra a alma. Matéria inveja o espírito. Homicídio do início da minha história, revividos ainda hoje. Mais uma vez eu pergunto: em mim, até quando Caim (matéria) matará Abel (espírito)?

Os personagens poderiam ser renomeados por Jung: Self e Ego. Ego que é passageiro, o denso; a prisão. Ego que educa para o egoísmo; pecado de todas as instâncias do crime da consciência. Ego que é a matéria que não brilha em nenhum ensino prático, que não se transforma como Siddhartha na iluminação de Buda. Ego que mata a vida em Paulo, o opositor de Deus de Cristo no deserto. Ego das passagens das intermináveis horas de Fernando Pessoa. Ego de Rohden: aquilo que é profano, o ego luciférico.

O Self da alma. A suavidade da libertação. O que libera em nós o Reino dos Céus. O Iluminado. O que vive no amor eterno. Na disciplina religiosa, na harmonia espiritual. A contemplação de Deus. A mistura de Deus em nós, nós em Deus[9]. Estamos nele, mas não somos Ele. Self de Abel, que agrada Deus[10]. Self do espírito que vivencia a magnânima vida eterna. Que tudo sabe; “em espírito e verdade” como revelados à samaritana, por Cristo. Self que sabe ao invés de apenas crer. Que tem ouvidos de ouvir e olhos de ver[11]. Que ressuscitamos sempre, depois da crucificação[12] do ego. Self do si mesmo[13]. Self do Eu-crístico que combate Ego-Luciférico.

O material e espiritual: Caim e Abel. Cristo e Lúcifer. A proibição de servimos a dois senhores: Deus e as riquezas[14]. Deus e Mamom[15]. Ego-material e Self-espiritual. Estou como um ego mortal, mas sou um Self imortal. A iluminação, a evolução é o reconhecimento do Self, o abandono da ditadura do Ego.

Essa dualidade já foi pensada no passado, antes mesmo da história contada de Jesus de Nazaré. Dualidade que temos em Heráclito[16], que numa questão de proporção universal nos diz que O ser não é mais do que o não-ser[17]. Poderia sugerir uma briga entre o espiritual e o material, entre subjetivo e o absoluto; entre tantas dicotomias dos pesadelos diários de qualquer filósofo[18]. Sócrates, Platão e os neplatônicos.

E o que dizer dos momentos que precedem o nascimento de Jesus, quando Herodes, em seu Ego-material, tenta manter o seu reino temporário, percorrendo todos os cantos do seu reinado a procura da criança self-espiritual do nascimento de Cristo? [19]. Quantas vezes em nós, que matamos Abel; tentamos também extinguir a manjedoura do nascimento de Cristo em nossos corações? Poderíamos fazer como os Reis Magos, que guiados pela estrela de luz[20], contemplam Jesus com presentes. Reis, como representação de grande poder do homem; e magos como a representação espiritual[21]. Mas relutamos em seguir a estrela, em transformar nossos corações em nascedouro; ou mesmo zelar por Cristo em nós como fizeram os pastores.

E meu corpo continua na indisciplina da mente, dos meus diversos corpos; dos meus desejos e sensações. A batalha que outrora havia começado, continua no meu semblante sisudo diante do espelho. Quanto tempo eu ainda tenho para decidir o que eu quero da minha vida? É complicado: estamos tão acostumados com as riquezas, com os tesouros mensuráveis; com ganhos palpáveis. Nossa mente educada há séculos pelo princípio do prazer e da sensação momentânea.

O nosso corpo e nossa alma, numa batalha sangrenta e dolorosa; como Caim e Abel. Um aniquilará o outro, é o destino. E nessa luta, que escudos podem me proteger? Quais as armaduras que eu devo carregar? Não vim trazer a paz, mas a espada como nos disse Jesus. A guerra da inquietude da minha alma, com a imposição do intelecto, são as diretrizes que me suportam.

Penso logo existo. Mas quem existe primeiro? Caim em mim, brigando pela pedra no deserto, querendo prova de Deus, se jogando no penhasco para ser socorrido por anjos? Ou em mim Abel, procurando a água da vida, a crença em Deus em verdade. O Reino dos Céus em nós mesmos? Vós sois Deuses!

E quando a guerra acabar? O perdedor morto. Abel nunca morre; resiste. O destino de Abel é vencer a batalha. Em Caim o recomeço, a nova chance; a ressurreição descrita em João. Quem não nascer de novo não entrará no reino dos céus, Jesus disse a Nicodemos. Que eu saiba renascer; que em mim habite a pedra que edifica; não o engano que se opõe; como se sucedeu em Pedro antes da revelação da crucificação de Jesus: “Saia de mim satanás, se opondo ao designo de Deus”- Disse Jesus à Pedro naquela oportunidade.

Não é fácil, mais uma vez nos desculpamos[22]. E no recomeço preferimos que a pedra se transforme em pão. Que os anjos nos socorram, quando nos atiramos no abismo para saber se Deus realmente existe. Quando achamos que somos o único, ao invés de únicos. Quando criamos os atalhos de nossa compreensão.

O modelo que não é fácil de seguir, para escolhermos quem viverá da nossa dicotomia; disposta há mais de dois mil anos com Jesus de Nazaré, em suas chagas, exemplos e virtudes. O caminho, a verdade e a vida. Onde o grande mestre nos apronta para a realidade, de que somos eternos, que valemos pela nossa indivisibilidade: Abel sempre existirá, e é ele o escolhido para viver no gozo do senhor.

Jesus de Nazaré, que se transformou em Cristo. Que já sabia desde os doze anos, que a contradição entre ego (matéria) e o self (espírito) tinha uma única solução: cuidar da alma, dos negócios do Pai. Jesus que morreu por nós, não pelos nossos pecados; mas para exemplo de nossa salvação. Jesus de Nazaré que chegou em Cristo, para as várias moradas. Que submisso a Deus, como Abel; soube o que fazer para agradar. Abel do simbólico Velho Testamento; de Jesus do Novo Testamento; ambos transformados em pastores.

E no espelho, em que meu reflexo diz o que eu estou; o refletido responde quem eu quero ser.



[1] Caim e Abel eram irmãos. Apresentados no Velho Testamento como primogênitos de Adão e Eva. Caim era mais velho do que Abel.

[2] Caim (lavrador) e Abel (pastor) apresentam ofertas a Deus. Caim apresentou frutas do solo, Abel apresentou primícias do seu rebanho. Abel agrada Deus com sua oferta.Com ciúmes, Caim arma uma emboscada para o irmão. Caim mata Abel.

[3] “Porque, quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem sacrificar a sua vida por amor de mim, salvá-la-á”. (Lc 9,22)

[4] Passado algum tempo, ofereceu Caim frutos da terra em oblação ao Senhor. Abel, de seu lado, ofereceu dos primogênitos do seu rebanho e das gorduras dele; e o Senhor olhou com agrado para Abel e para sua oblação, mas não olhou para Caim, nem para os seus dons. Caim ficou extremamente irritado com isso, e o seu semblante tornou-se abatido. O Senhor disse-lhe: “Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante? Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te. Mas se precederes mal, o pecado estará à tua porta, espreitando-te; mas, tu deverás dominá-lo.”(Gn 4,3-7).

[5] “Jesus então lhe disse: Feliz és, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isto, mas meu Pai que está nos céus”. Mt 16,17

[6]Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito”. Rm 12, 2

[7] Inscrição no oráculo de Delfos, atribuída aos Sete Sábios (c. 650a.C.-550 a.C.)

[8] A batalha em nós se desenvolve muito pela decisão entre aquilo que é certo e aquilo que é gostoso. Entre aquilo que é trabalhoso e aquilo que é confortante.

[9] Panenteísmo - Todas as coisas estão na divindade, são abarcadas por ela, identificam-se (ponto em comum com o panteísmo), mas a divindade é, além disso, algo além de todas as coisas, transcendente a elas, sem necessariamente perder sua unidade (ou seja, a mesma divindade é todas as coisas e algo a mais). Wikipédia, consulta em 12/09/2010.

[10] Passagem da Gênese Judaica.

[11] Nota do Autor: A cura de Jesus de alguns cegos, coxos, surdos e aleijados; podem ser a representação da nossa própria cura, em decidirmos olhar para a verdade, deixarmos de andar de forma curvada, como se não fóssemos soberanos filhos de Deus.

[12] Crucificamos o Ego.

[13] Inglês.

[14] “Quem não deixar tudo não pode ser meu discípulo!” – Jesus de Nazaré.

[15] Mamon é um termo, derivado da Bíblia, usado para descrever riqueza material ou cobiça, na maioria das vezes, mas nem sempre, personificado como uma divindade. A própria palavra é uma transliteração da palavra hebraica "Mamom”, que significa literalmente "dinheiro". Wikipédia.

[16] Heráclito de Êfeso, filósofo pré-socrático.

[17] Nesta sua frase, Heráclito já definia a dualidade das coisas do mundo.

[18] Gandhi fala sobre o puro e o impuro.

[19] “Venham a mim as criancinhas, pois delas é o reino dos céus”

[20] Nota do Autor: Que pode ser interpretado também como uma luz interior.

[21] Rei é a figura do homem de grande prestigio e Mago de grande poder sabedoria.

[22] A porta pequena.

quarta-feira, fevereiro 09, 2011

FOLHA 10/05 – PAIXÃO SEM CAUSA



Que eu saiba, aqueles dardos não estavam envenenados. Se ela estava sentindo alguma coisa, não era pelo acerto involuntário do arqueiro. Era mais do que isso: sentia calafrio, desespero, medo. Cá entre nós: nenhum veneno seria suficientemente poderoso para deixá-la daquele jeito. Mesmo assim ela se debatia no chão, gritava, chorava. Seu sofrimento era visto por todos, pacientemente. Era como se ninguém pudesse socorrer a garota, ou pelo menos dar-lhe um ombro para as últimas lamentações. Ela morreria, com certeza. E todos só contavam com isso naquele momento, não por desejo; mas por impotência.

Quem era? Ninguém sabia. Nem mesmo o que ela estava fazendo na agência bancária naquele desgraçado momento. Um assalto: cinco homens entraram no banco, pediram o dinheiro. Todos os outros se abaixaram, era uma ordem. Eu assisti tudo, estava deitado perto do bebedouro. Dois homens ficaram na porta, olhando cada movimento do vigia. Outros dois em direção aos caixas. Um único, o mais forte; pegava o dinheiro. Não demorou muito, cerca de quatro minutos; nem consigo entender como um tempo tão curto pode demorar tanto. Uma eternidade, cada movimento dos assaltantes.

Lembrei que poderia não estar naquele banco. Pensei que poderia não haver aquele assalto. Pensei que eles poderiam me matar por qualquer bobagem. Pensei muito em minha vida. Minha vida não estava sendo muito boa. Estava ali para pedir um empréstimo para quitar minha moto. Eu trabalhava de noite, entregava pizza. Briguei com Angélica, na verdade desmanchamos. Meu pai continuava bebendo, minha mãe continuava reclamando. Uma única reclamação em voz alta poderia ser meu fim, bandidos não gostam de pessoas que reclamam da vida. Fiquei em silêncio em meus pensamentos.

Eles se juntaram no centro do banco. Pareciam aguardar algum comando, algum mísero comando para irem embora. Ficaram parados, estavam aflitos. Todos naquele lugar estavam aflitos. Eu baixei minha cabeça, não queriam que me vissem bisbilhotando, afinal não era da minha conta nada daquilo (desculpe-me o trocadilho, afinal o momento é tenso). O homem com o pacote de dinheiro gritou: “Cadê o filho da puta do Meca?!” Quem era Meca? Acho que era o cara que estava com o carro do lado de fora do banco. Sempre acontece isso nos filmes. Os quatro bandidos correm para fora do banco, jogam as sacolas com dinheiro e fogem da polícia. Meca não chegou até agora.

O que é o tempo? Em dois minutos decidi entrar nesse banco e pedir o empréstimo. Em três meses perdi meu emprego, minha vô morreu, roubaram meu carro, briguei com minha noiva por causa de uma outra garota e arrumei esse emprego de entregador de pizza. Noivado de cinco anos acabado por causa de uma garota que me fez feliz por seis segundos (uma ejaculação não dura mais do que isso). Um assalto saindo errado por causa de alguns minutos de atraso. Meca já estava um minuto atrasado.

Antes de fugirem: um movimento qualquer do corpo pode demorar segundos. Levantar o braço em direção a cabeça deve demorar uns dois. Uma mulher começar a chorar por causa de um assalto pode demorar três minutos. Uma criança querendo mamar dentro de um banco pode ser instantâneo. Um vigia tentar salvar a todos pode ser uma grande burrice. O vigia ainda estava com a arma na cintura. Quem foi o idiota dos cinco bandidos que não percebeu isso? Ele aponta a arma para um deles, indistintamente. Por sorte, por simpatia. Mira na cabeça. atira!

Quantas pessoas podem se esconder num tumulto? Várias. Eu continuei no mesmo lugar. Ainda estava rezando. Uma senhora se escondeu atrás da mesa do gerente. Tentaram lhe acertar um tiro. Todos, ou quase todos se salvaram. Uma garota estava com medo, se levantou calmamente; era como se não tivesse percebido nada. Quanto tempo demora para percebemos que estamos em perigo? Buscar abrigo, sei lá correr para algum lugar escondido? Deve demorar pouco. Ela ficou parada, observando as pessoas correrem, e os bandidos atirarem. Era como se nada estivesse acontecendo.

Um tiro certeiro. Não existia nenhuma maçã em sua cabeça. O alvo era aquilo mesmo: uma esfera com orifícios coberta por fios dourados. Espalha sangue por todos os lados. Não era uma flecha envenenada. Nem um dardo. Era uma bala. Os bandidos fogem, e um morre; estamos atônicos com aquela imagem violenta, uma mulher morrendo. Meca chega bem na hora da fuga; mas chega atrasado. Poderíamos estar vendo a garota ainda viva.


Eu poderia tê-la encontrado na porta do banco. Ter me apaixonado. Iria convidá-la para um almoço. Vão dizer que isso não era possível? Em poucos minutos estaríamos longe daquele lugar. Ela não teria levado um tiro na cabeça, e eu não teria que lembrar as coisas ruins da minha vida. Sei que mais nada importava: nem noiva, nem mãe, nem pai, nem bandido. A moto eu vou devolver para a loja. Ela nem iria fazer tanta falta. A garota.... essa sim não sai dos meus pensamentos.
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quarta-feira, fevereiro 02, 2011

Cartas ao vento 031


Já pensei numa reunião de pensadores. Todos aqueles que eu já li em minha vida. Não são muitos, pensei naqueles mais conhecidos: alemão, judeu, gregos e afins. Então, esses camaradas que tentaram decifrar o mundo; todos eles numa mesa, comendo e bebendo alguma coisa gelada. Esqueci de dizer: o dia da conversa entre os pensadores é um dia muito quente.

“A cerveja não está gelada!”

Essa frase tratada como algo importante. Frase que daria matéria-prima para os delírios. Um discutindo que tal, outro que nada sabe. A cerveja gelada era um inferno para todos eles. Não há tantos teólogos nessa minha mesa, infelizmente.

“A felicidade existe!!”

Um deles grita.

Mas ele não sabe realmente se a felicidade existe, apenas pensa saber. Isso é pior do que não saber: a felicidade tem fim. O resumo de todos eles ali, comendo uma porção de camarão e queijo parmesão com uma cerveja gelada. Muito gelada. A felicidade existe, saudamos.

Mas ela não existe, sabemos bem disso. Mas não nos importamos. É melhor ignorar o fato que sabemos, fiquemos todos com a suposição. A felicidade ali, em poucas horas. Logo todos terão que partir para suas casas, suas vidas; seu cotidiano. Cotidiano é a pior infelicidade de um ser humano, diz um deles; mais aventureiro que filósofo. Todos nos concordamos com ele.

E se a felicidade existisse? Quer dizer, se ela existir de verdade. De mentira, subjetiva; ela está aqui agora, conosco bebendo cerveja. Mas de fato, objetiva? Não existe e todos nós concordamos. Mas se existe? Pergunta que não era para ser feita, todos cabisbaixos. Se ela existe de verdade e não a encontramos? Se ela estiver do lado de fora, esperando abrirmos a porta?

De repente a euforia virou preocupação: concordamos mais uma vez que era melhor que a felicidade não existisse, estávamos todos contentes com a ilusão de tê-la encontrado.

Mais um brinde!
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quinta-feira, janeiro 27, 2011

A casa

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As paredes velhas, tão velhas.
Já eram velhas quando corria
descalço pelos corredores.
Hoje mais velhas ainda.
Não corro mais, nem ando.
Nem sinto gosto da comida,
Nem choro pelas lembranças.
Naquela casa, com paredes
Elas não me aprisionavam
Agora são meu tormento.
A casa velha, com cheiro
De comida, de pessoas;
De um perfume pela sala.
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Não posso ficar aqui,
Nessa casa, nessas lembranças.
A casa não existe mais.
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Apenas nela, solitária,
os fantasmas da vida.
Hoje mais velhos, ainda.
Sequer posso entrar,
Sentar-me no sofá,
Ler o jornal e tomar café.
A vida não é mais minha,
Nem a casa de todos nós.
Agora a casa é um tormento,
Sem paredes, sem pessoas;
Sem ninguém para tomar conta.
As plantas danam no chão
O resto de incerteza nos pés,
Sem qualquer leveza.
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sexta-feira, janeiro 21, 2011

Caminho torto

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Queria eu fosse toda essa história que cansa de contar,
que eu fosse esse esbelto cavaleiro dos dias de ontem,
que matava dragões e usurpava espadas preciosas.
Queria que me olhasse como todos esses humanos,
que choram de noite, que precisam de colo.
Que bebem água, com sede; das cachoeiras brilhantes;
que roubam estrelas, sentem pena da morte;
que voam lentamente, livres; num ritual angélico.
Queria eu fosse esse santo dos milagres humanos,
que acaba com a fome; que saciam as dores;
que inventa sonhos.
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Queria ser um pouco melhor do que sou,
caminhando na chuva, nas ruas de paralelepípedo.
Que achasse graça das gotas, que me jubilasse nos rios.
Que ouvisse o cão raivoso na beira da estrada,
pensando como eu seria em seu desprezível lugar.
Queria que não me deixassem de lado,
como se eu não precisasse de ninguém.
Não pudesse ouvir a campainha de casa, numa noite
de tempestade e negridão por todos os lados,
onde eu não conseguisse dormir direito
com medo do que sou realmente capaz:
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Mas que não me sentisse tão sozinho.
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Sou vibrante nas coisas belas, mas, às vezes;
nessas noites infames, me perturbam as más.
Queria merecer a reverência agradável;
Que sustenta o corpo humano cansado, e
alimenta o sentimento pelas coisas comuns.
Mas, desse alimento, outrora atrapalha a vida
nos confins do mundo eterno,
onde as asas são imprestáveis ao vôo,
e as espadas inúteis a guerra.
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Queria ouvir você chegando, e mais perto;
contasse mais uma vez a história,
que sabe, acha ou pensa de mim.
Que as coisas boas fossem pequenas,
e que o caminho torto não apenas o fim.
Queria ser melhor do que sou,
de uma lenda que parece confusa,
mas nessas palavras inversas, resolve;
como a vida na morte parece fazer.
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quarta-feira, janeiro 19, 2011

Acordei

Braços presos, a carne fria.
Meus pés acorrentados;
Enfim, acordei.
Mas acordei assustado.
Olhos cansados, cabelos molhados.
O corpo suado, denso.
Acordei com medo, o que é pior.
Pior que a morte, o sono e a fome.
Acordei sozinho, em silêncio.
Do vôo longe, inconsciente.
E as pernas cansadas da procissão.
Desamparo do ideal.
Acordei sozinho.
E as cartas que voaram longe, sem ninguém.
Pois em um momento, cansei de todos.
Enfim, acordei.
E voei alto nos pensamentos impróprios.
E decidi a morte.
E contra a crença não se pode.
Morri aos poucos, totalmente vencido.
Mas, enfim, acordei.