terça-feira, abril 01, 2014

Comida de boteco e o azar do copo cheio

 

Antes de vocês de vocês chegarem aqui, eu estava bem acompanhado. Era uma mulher alta, cabelos negros e um senso de humor incrível. Ela foi embora depois de tomar uma bebida. Estou com fome, ela também estava. Vai acreditar que com a fome se brinca? Eu pedi dois ovos, aqueles coloridos. Pedi uma garrafa de cerveja também. Algumas vezes eu tomava vermute, mas hoje não era o caso. Ovo colorido é culinária de boteco. Quanto mais colorido melhor. Levantei da cadeira e deixei o copo na metade. Dá um azar danado uma coisa dessas, vocês sabem.

Viu bebum se machucar em via pública? Bebum tem santo forte. Anjo da guarda, guardião; sei lá quais nomes para a proteção. Quase todos os bebuns fazem a coisa certa: não deixam o copo cheio no balcão. Volto para beber o resto da minha cerveja. Que diabos fizeram com o meu copo? Estou marcado pela eternidade! Eu sabia que o destino seria cruel comigo. Um copo largado no balcão! Ninguém sai ileso a tamanha superstição.

Num canto escuro um grupo cantava um rock conhecido. Gostava daquele lugar por causa da música. Bebida gelada tem por toda parte, mas música boa? É quase um milagre divino. O barman se aproxima, nós nos conhecemos de vista, mas eu não sei o seu nome. Cinco anos frequentando o mesmo lugar e não fui capaz de perguntar o nome de que me servia. Que falta de consideração a minha.

“Qual o seu nome?” – Eu começo.
“Tá brincando?” – Ele.
“Tenho cara de quem está brincando?”
“Você bebeu um bocado”
“Eu reparei a pouco que não sei o seu nome.”
“Meu nome é José.”
“Prazer, José.”
“......”
“Meu nome é Carlos.”
“Eu sei que seu nome é Carlos. Também sei que é filho de Joelma e Francisco”
“Oras.”
“Quer que eu te leve para casa?”
“Não quero que me leve para casa, quero apenas terminar minha cerveja. Onde você colocou meu copo? Voltei aqui por causa do meu copo”
“Você chega aqui todos os dias e faz as mesmas perguntas.”
“Eu sei que venho todos os dias.”
“Mas não sabe que toma apenas um refrigerante, que você insiste em chamar de caçulinha?”
“Hã?”
“Depois pede dois ovos, os mais coloridos possíveis, como se a casca desse sabor diferente.”
“Como?”
“Depois reclama da música alta, dos guardanapos ásperos, da falta de fio dental. Não quer palitos de dente. Não sei qual motivo dessa exigência.”
“Isso é ultrajante.”
“Sua palavra preferida.”

Peço mais uma cerveja e não dou muita bola para aquele sujeito me dizendo barbaridades. A música não é tão boa assim. Nem posso dizer que prefiro fio dental. A cerveja está gelada, mas confesso já ter bebido cervejas melhores. É claro que não sou um especialista, mas tenho meus gostos pessoais. Refrigerante? O cara só pode estar brincando com minha cara. Nunca vi um cliente ser tratado daquele jeito. Não voltarei mais aquele lugar, é uma promessa.

Em relação a cerveja: Prefiro as inglesas. A música e a cerveja inglesa são as maiores conquistas da humanidade. Uma vez namorei uma garota de Londres. Ela falava mais ou menos o português, pois seus avôs eram de Lisboa. Existe sim grandes diferenças entre o português falado em Portugal do resto do mundo. A língua nos atrapalhou um pouco. Terminamos depois de alguns meses. Ainda sinto um pouco de saudade. Tenho certeza que seria feliz com aquela garota.

“Carlos, está chorando de novo?”
“Quem lhe deu essa intimidade?”
“Quer que eu te leve para casa? Não vou perguntar de novo.”
“Está tarde, vou tomar do mais uma.”
“Mais uma e chega.”

Ele me traz a cerveja gelada. Da um azar danado sair do bar sem tomar uma saideira. O sujeito me carrega nos ombros. Estou visivelmente embriagado. Não queria que meus vizinhos me vissem daquele jeito. Na minha idade, chegar carregado é vergonhoso. Ele me coloca na cama. Rezamos juntos, assim como ensinei meu filho. Ele me cobre, acende um abajur com luz amarela -  Tenho medo do escuro, tenho medo que Deus me abandone - Ele sai do quarto:

“Boa noite, pai.”


Aquele sujeito parecia realmente conhecer o sujeito que não mais se reconhecia.

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