quinta-feira, junho 21, 2007

Prisma

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Fiquei horas olhando para o rio. Nasci aqui perto, vinte minutos correndo pelo meio do mato, fica minha casa. Era grande, cinco quartos e uma enorme cozinha. Olho para o rio, ele parece continuar do mesmo jeito. Minha casa mudou muito em todos esses anos. No rio, os poucos peixes e os casebres que foram construídos. Tem mais sujeira também. Olho para o rio, e ele continua correndo para o mesmo lado de sempre. Não tem pescadores, nem crianças tomando banho. Mas ele continua o mesmo. As águas mudam, o rio sempre continuará o mesmo.

Caminhando de volta para minha casa, para onde ela existia. Era uma casa grande, eu disse. Minha mãe ficava várias horas na cozinha preparando a comida. Na mesa todos ficavam juntos, conversando casos. Arroz, feijão e carne. Ainda hoje sinto o cheiro da comida, entrando pelo nariz e indo direto para o estômago. E nesse caminho que eu andava muitas vezes por dia, hoje não existe mais. O caminho de terra, onde a chuva fazia lamaceira, que servia para guerra entre os vizinhos, onde eles se juntavam para tirar a carroça atolada. Nesse caminho que estou agora, que não existe mais, todos foram felizes.

Parei perto do semáforo. Ali deveria nascer mais uma jaca. Daquelas imensas, que minha mãe vinha buscar com meu avó, e que carregavam num carrinho de mão, com todos os moleques em volta, aqueles que agora mesmo estavam sujos de barro. No meio do caminho, sentíamos um cheiro de café. Posso sentir agora mesmo o cheiro insuportavelmente bom do café. Podia ser minha mãe, Dona Zumira ou Dona Clarice. A gente esquecia a jaca, saia correndo para ver a mesa pronta, com bolo de fubá e leite fresco. Era uma briga, aquela molecada cheia de lama dentro de casa.

Ando mais alguns minutos, o povo continua se trombando, correndo desesperado. Eu já não tenho pressa, minha vida já andou muito rápido todos esses anos. Os carros, as pessoas e as nuvens são diferentes. Conto duzentos passos depois do semáforo, paro. Era aqui a escola. Tia Lurdinha, no quadro negro. A escola era branca com janelas verdes. Todos os vidros inteiros, limpos. Ela colocava as letras, que naquela hora não faziam menor sentido para mim, e ia formando palavras, gestos e sonhos. Naquele quadro, onde o abecedário nasceu; morreu também um pouco da minha inocência. Descobrir é se transformar.

Logo fui percebendo que a letra formava palavra, que formava frases, que formava idéia. Idéias nem sempre boas, mas idéias. Naquele quadro, onde agora está a placa publicitária vendendo cueca masculina, cerveja sem álcool e refrigerante diet, tinha-se noção exata que o mundo nunca seria o mesmo. E as palavras foram crescendo, se criando; virando arma. E a poesia? Minha professora não disse nada sobre poesia. Nem precisava dizer, estava no olhar. Nas coisas do dia, nos sonhos da madrugada. Na descoberta surpreendente de que o mundo é diferente do que imaginamos.

Nas coisas da poesia a vida se transforma, se ajeita. Ela não disse isso, mas podia demonstrar em todas suas ações. A professora, que jamais existiu de verdade, é obra dos meus sonhos. E na poesia ela se fortalece, criando vida, sensações e ensinamento. A jaca, que eu odeio; é ótima lembrança. É a poesia, sempre, o motivo mais importante. O rio, que lá no passado sempre foi um rio, hoje é algo mais do que saudade da minha infância inexistente. E em mim, parado olhando para a realidade, sou eu mesmo; mas completamente diferente.


( Trecho Publicação Folhetim Hoje é Vinte - 20/07/2007 - Publicação via e-mail)
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