terça-feira, maio 20, 2008

Os pés no sofá II

Folha 44/08

Estou cansado, mesmo assim aceito a entrevista. Ela entra. É uma mulher nova, muito nova. Recém formada. Odeio essa gente que estuda pouco, tem muitos diplomas; mas não sabe coisa nenhuma da vida. Senta-se. Seus cabelos loiros. Pele muito branca, olhos verdes e um sorriso infantil. Diz que fala três línguas, eu duvido. No entanto não tenho menor condição de avaliar o sotaque francês, a desenvoltura do inglês; muito menos discutir português. Eu porcamente falo minha língua pátria, que de simples, já não tem nada. Ela não usa caderno, nem prancheta. Um computador de bordo, tiracolo. Daqueles que podemos levar para a praia, carregado no lombo, quando praticamos alpinismo. No banheiro. Não levo nada para o banheiro. É ali que reflito pacientemente sobre minha vida. Devemos ter um momento de meditação, dizem os médicos.

“O índice de vendas do seu segundo livro foi considerado muito baixo, principalmente quando compararmos os números do mercado editorial, que cresceu quase 25%”. Pronto! Botou percentual na conversa eu danço. Tudo bem que 25% é uma coisa comum de percebermos. Pego um bolo de nozes (odeio nozes) reparto em dois. Minha empregada também odeia nozes. Então, como sei que eu não vou conseguir comer metade de um bolo, eu corto mais uma vez esse pedaço no meio. Estão ai meus 25%. Assim, se o mercado cresceu tudo isso, significa que o bolo ficou maior e que as pessoas gostam de nozes. Continuei olhando para a menina, enquanto ela tentava formular a pergunta. “A história da garota que procura o pai e pede ajuda para um detetive não é coisa nova na literatura. Acredita nessa explicação para seu fracasso?” Até que enfim a pergunta.

Eu me ajeito no sofá, me inclino mais um pouco. Não tenho idade para certas coisas, mas é muito bom poder observar o corpo de uma mulher. Ajeito meus óculos: “Você pratica alpinismo?” Eu pergunto. Dessa vez é ela quem se sente inconfortável. “Como assim? Alpinismo?”. A pergunta era simples, bem mais simples do que a pergunta que ela fez para mim. No entanto, eu tinha a resposta e ela não. “Assim como você não gosta de alpinismo, algumas pessoas adoram novidades. Minha história pode até ser muito conservadora, sem criatividade. Mas sempre tem alguém que sobe o monte pela primeira vez”. Ela sabe que minha metáfora é idiota, mas não tem coragem de retrucar. Desculpem-me por ser tão tosco.

“Não se importa com as críticas? Têm você como um escritor medíocre e sem criatividade?”. Não me importava, eu disse. Mas o sentimento que ficava era de que alguma coisa não ia bem. Talvez por isso devesse responder que as críticas eram estimulo para eu continuar escrevendo e me empenhando por uma história melhor. Mas era uma mentira, eu não me identificava com as críticas e assim elas não me davam motivos para nada. Minhas histórias continuariam do mesmo jeito, e talvez o mundo não ficasse melhor ou pior para entendê-las como diferente. É mais difícil mudar a cabeça de um escritor do que mudar sua história. Eu abaixo a cabeça, como consentindo toda humilhação e respondo: “Claro que as críticas me incomodam, hoje mesmo vou mudar minha biblioteca, vou começar a ler os contemporâneos. Vou ler mais jornais, ficar antenado às mudanças. Não é assim que te ensinaram?”. Ela sorri como se fosse de gratidão, afinal o nosso tempo não estava sendo desperdiçado.

“Voltando ao assunto do livro: Eu considerei muito ordinário o título, já que ele pouco revela sobre o desenrolar da história. Enfim, para encurtar a pergunta, o título tem alguma relação como o tema?”. Se eu estava cansado no começo da entrevista, a coisa ficou muito pior agora. Minhas costas doíam, meus olhos lacrimejavam e meu estômago roncava. Minha empregada entrou na sala, era hora do meu remédio. A menina continua me olhando, esperando uma resposta. Nessa altura da vida, quando eu poderia dizer muito sobre minhas experiências, acabei descobrindo que as pessoas não estavam interessadas.

Para encurtar a resposta: “Acho que não, mas poderia.”. Reposta vaga, como tem sido nossas vidas.

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