sexta-feira, abril 18, 2008

Invés

FOLHA 43/08 – INVÉS (20/04/2008)

Água por todos os lados. Não estava me afogando, mas a sensação era a mesma. Chovia forte, raios e trovoadas. Eu estava sentado no sofá quando a luz se apagou. Estava pensando em que pizza iria pedir para a janta. Momentos de inquietação e euforia. Estava sem fome, mas sabia que precisava comer alguma coisa. O sufoco continua, mas agora não era mais água que invadia a sala, era a fumaça de madeira queimada. Sentia um cheiro forte de coisa queimada, mas não era plástico nem qualquer coisa elétrica. Era piaçaba pegando fogo. Não estou com fome. A última gota do vinho sempre dá mais prazer do que a primeiro. Tudo está pegando fogo.

Acho que a falta de ar nos faz ficar inconscientes. Consigo me levantar rapidamente, ainda estava escuro. Abro as janelas. Cheiro forte diminui, a chuva respinga no meu rosto, no corpo. Não sinto mais falta de ar, mas ele continua poluído. Lá fora tudo escuro, sem estrelas e sem lua. Uma nuvem negra se movimenta lentamente, é uma das nuvens mais pesadas que eu já vi. A chuva pára, mas pequenas gotículas continuam entrando na sala. O vinho acaba também, mas ainda sinto o cheiro do vinho no fundo da garrafa.

Estava tudo escuro, mas eu sabia exatamente onde as coisas estavam. Caminho da janela da sala até a cozinha. A cozinha estava mais clara do que a sala, uma luz fraca vinha do lado de fora. Não sei de onde vem. Eu procuro outra garrafa de vinho, eu sei que existe uma em algum lugar. Não estará gelado, vinho branco tem que ser gelado. Não me importo. O cheiro da fumaça e a sensação de estar me afogando diminuem. Lembro do seu rosto, do seu nome e do perfume que você insistia usar. Lembro dos seus olhos, de piedade me olhando sem constrangimento. Eu sei quem eu era, você descobriu tarde demais quem eu sou. Pego o vinho, mas estou sem sede e sem fome.

Na minha carteira eu tenho o seu telefone, um retrato que me deu quando nos conhecemos. Estávamos num dia corrido, mesmo assim conseguimos conversar sobre quase tudo que vivemos em nossas vidas. Sua vida era tão desinteressante quanto a minha. Mas você dizia que não estava chovendo, nem que sentia o cheiro de fumaça e a fome. Eu ando sem fome também. Queria ligar para você para dizer como estou me sentindo, ao invés, escrevo o que não sinto. Pego o seu número, decoro, guardo o papel novamente na carteira. Um dia ele será útil. Volto para o sofá, com a garrafa de vinho branco sem estar gelada. O sofá continua no mesmo lugar, assim como meus sentimentos.

A foto? Sei que tenho uma foto sua guardada em algum lugar. Procuro nas gavetas, mas é complicado com a escuridão. Uma foto sua numa praça, acho que estava com sua avó. Aquela que morreu de velhice. Quero morrer de velhice também, mas não na miséria. Acho que é um medo que todos nós temos: o de morrer na miséria. Pior do que morrer na miséria é morrer sozinho. Eu me sinto sozinho hoje, e a situação não vai melhorar nos próximos dias. Creio até que vai piorar, já que começo a admitir que minha própria companhia seja desgastante. Como faço para me livrar de mim? Sento no sofá e tomo mais gole de vinho. Quente e sem sabor. Esse não era o melhor caminho.

A luz volta mas eu prefiro continuar daquele jeito. Há momentos maravilhosos para desejarmos que ninguém nos procure mais. Esse é o momento, pois livro-me de qualquer decepção que possa sentir pelas pessoas. Sem ninguém por perto, é quase certo que o único motivo de contrariedade é somente com nossa própria imagem andando de um lugar para o outro. Não vou mais andar de um lugar para o outro: sinto-me novamente sem ar. A fumaça com cheiro de madeira queimada também continua. Pego no sono ou pelo menos a sensação é de dormir. Mas talvez seja outra coisa muito parecida.

Portanto não me procurem, pelo menos por hoje a luz continuará apagada.
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