sexta-feira, março 14, 2008

Abutre da língua

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Fui convidado para um debate sobre língua portuguesa. Eu duvidei do convite, achando que o endereço estava errado e o remetente insano. Não é para menos minha justificativa: pensam que os motivos aparentes de ser escritor podem um dia contaminar a necessidade de ser gramático. Pois bem, sou um escritor razoável, e gramático idem. Explico: escrever é bem mais fácil do que escrever bem. Entender como funcionam as passagens das horas, as rotinas e o argumento, tudo é menos complicado do que qualquer regra de concordância nominal (ou verbal, como queiram). Sinceramente, minha opinião não seria ouvida sobre qualquer dúvida. Recusei e não fui.
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Caso fosse ao debate, diria que a língua precisa ficar menos afiada, quem sabe poderia trazer um número maior de adeptos. Do jeito que está todos preferem ignorá-la. Eu mesmo insisto em dizer que conheço pouco, que é a mais pura verdade. Já pensou quantos erros existem no texto até agora? Eu nem penso neles. Teria que parar meu raciocínio para buscar regras. Um minuto, preciso de correção... (Longa pausa. Procuro um dicionário e um livro de gramática. Não sei por onde começar. Fecho os livros, deixo-os em cima da mesa. Volto para o texto). Nem lembro mais o quê estava falando. Buscar evidências gramaticais, muitas vezes atrapalha qualquer raciocínio.
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Outra coisa que não consigo entender é quando me perguntam sobre os personagens. Dizem que sou eu aquilo tudo, todos os assassinos, psicopatas, misóginos, machistas e infelizes que escrevo. Infeliz eu posso até ser um pouco, mas o resto é absurdo. Não sou meus personagens, eles são um pouco de mim; no que ouço, acredito e vejo. Não nessa mesma ordem, nem na mesma intensidade. Diria isso no tal debate: diria que me preocupo com o texto e com a construção dos personagens. Diria que adoro quando um leitor consegue imaginar, através das palavras, os sentimentos e o ambiente que estou retratando. Iria discutir isso, com certeza. Mas regras? Ora, regras.
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Mas é bom manter ordem no galinheiro, como dizem os antigos. Daqui a pouco, sem regras; ninguém vai entender ninguém. Talvez já esteja acontecendo isso, quando vemos aqueles longos e coloridos recados em sites de relacionamento, em mensagens instantâneas e afins. Gírias virtuais, linguagem instantânea. Começaram cortando as vogais, depois algumas consoantes; hoje cortam frases inteiras! São capazes de uma comunicação através de caretas, sorrisos e arvorezinhas piscando. Se todos conseguissem entender a mensagem, com certeza seria um milagre da multiplicação da idéia!! Dizer muito, com muito pouco.
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Então, peguei a carta novamente. Afinal qual o motivo do convite? Talvez meu nome estivesse em algum banco de dados, de universidade ou de cartão de crédito; e ali, sem qualquer malicia ou desprezo, eu tivesse escrito que gostava de literatura. Pode parecer absurdo, mas não é improvável. O convite estava ali, na minha frente. George Orwell reescreveria sua obra-prima, ao verificar tanta tecnologia nos dias atuais: são capazes de descobrir que gostamos de literatura através de um cartão de crédito!!
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Guardo novamente o envelope. Não iria, por motivo nenhum. Talvez não conseguisse discutir a língua em nenhum lugar desse mundo: na internet e o neologismo, ou num encontro de gramáticos e a necessidade de acabar com a inspiração poética. Poetas precisam ser livres, pelo bom gosto da literatura, pela coerência das palavras; e pela musicalidade do texto. Mas com certeza, não devem ser condenados pela gramática. Estar entre eles, os críticos e gramáticos, pode ser enfrentar minha forca!
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