Não estou escutando
nenhum barulho da rua, o silêncio é meu principal inimigo. Adoro ouvir crianças
brincando. Adoro o som da buzina. Adoro as pessoas conversando. De repente tudo
ficou assustador. O silêncio surgiu do nada: a catástrofe do isolamento fez a
cidade parar. Não costumava sair de casa, agora estou impedido. Os outros - que
posso resumir em meus filhos, netos e netas – me visitavam cotidianamente. Tem
também o pesadelo, mas não frequente. Não há culpado por estar aqui abandonado,
embora sempre exista uma explicação. Voltando: todos os dias os barulhos que
vinham do lado de fora, da rua, diziam-me que eu estava vivo. Um automóvel, uma
bicicleta com aquelas buzinas estridentes e uma vizinha falando com alguém. Eu
não me interessava pela vida dos outros, mas os gritos em meus ouvidos mandavam:
respire!
As notícias
desanimadoras não dão conta de um mundo em desatino. É o apocalipse, falam as
vozes que não ouço, mas que imagino. O mundo está acabando e pode ser ainda
pior se meu neto, minha neta e meus filhos vierem todos aqui para um café da
manhã. Eu adoro escutá-los brigando sem parar, quase que engolindo qualquer sentido
no diálogo. Adoro quando eles correm desatentos em perigo. Meu filho mais velho
é mais ponderado, seu filho mais esperto. Meu filho mais novo é mais agitado,
sua filha menos covarde. Todos eles tão distantes agora, dizendo que estão me
protegendo de uma doença que, segundo minha neta, não nos deixa respirar
direito. Ela resumiu tudo em poucas palavras: sem abraço, aperto de mão, lavar
as mãos e muitos banhos! Ela me disse isso mesmo: Muitos banhos! Não disse nada
sobre o silêncio que é meu inimigo.
Eu conto os dias no
calendário fazendo um enorme círculo vermelho em cada dia que passa e em cada
tempo arrastado da minha existência. São cinco dias sem nenhum parecer
favorável de que a humanidade sobreviveu do lado de fora. Só um vento
silencioso que entra pela fresta da janela que deve ficar sempre fechada. É
sabido que não se sabe de nada da nova doença, por isso o vento pode ser implacável.
Lavo as mãos antes de comer, antes de ir ao banheiro, antes e depois de tirar o
pijama. Minha vida virou uma sucessão de silêncio e pijama. Lá fora um
assustador cheiro de mato e de chuva que não cai, pois não chove há cinco dias.
O silêncio, as nuvens,
a chuva, os pijamas, lavar a mão.
Num dia desses, que já
perdido no calendário, um barulho estranho no cano da cozinha. Pelo ralo eu
vejo os olhos avermelhados e pelos bem branquinhos pedindo socorro. Conheço
ratos, mas não ratos tão brancos. Ratos com cheiro de banho tomado, com um ar
da graça quase blasé. Rato no esgoto querendo sair pelo ralo da minha cozinha pedindo
socorro, nunca vi. Eu não entendo linguagem de bicho, mas eu sempre soube
quando Margareth, minha gata já falecida, queria carinho e comida. Aquele rato
branco só queria sobreviver. Ele poderia entrar por qualquer lugar no meu
apartamento, comer e sair correndo, mas ele preferiu a dignidade de pedir um
pedaço de qualquer coisa.
Pego na gaveta umas
ferramentas.
Seria impossível
arrancá-lo pelo ralo sem tirar a grade de proteção. Com esforço eu arranco a
primeira parte do ferro, ele estica a cabeça e tenta passar pela fresta. O
desespero de quem tem fome ou a vaidade de quem está perdido? Arranco então a
segunda parte, quando ele consegue passar com todo o seu corpo moloide pelo buraco,
correndo para debaixo do armário. Um rato branco, olhos vermelhos e um rabo
rosado. Eu tento perseguir o bicho, mas eu não tenho mais precisão nas pernas,
nem consigo enxergar tão longe. O rato branco se esconde em algum lugar daquele
imenso apartamento vazio.
Não preciso me
preocupar com ele. Deve ter encontrado um lugar seguro. Volto para a sala e o
filme já tinha começado. Sei que é de noite, mas não quero saber as horas. As
datas e os horários me deprimem. Um saco de pipoca na mão e um lenço na outra.
Eu choro muito a desilusão da vida, mesmo que na ficção. O filme não é tão bom,
por isso eu durmo quando nada na vida do protagonista parece estar resolvido.
Um sono profundo é privilégio dos mais jovens. Eu durmo como se estivesse
acordando e acordo como se estivesse dormindo.
O meu grupo de risco é
a indiferença.
Dizem que muitas
pessoas na minha idade reaprenderam a viver. Estão num oásis da existência
entre o esquecimento e a falta de paladar. Encontram satisfação na leitura de
um livro com letras minúsculas tanto quando encontram no comprimido na hora
certa. Mereço um prêmio acertar a posologia sem ter um relógio pela casa.
Enquanto penso tudo isso é o som da televisão que me distraí. Mas é por pouco
tempo. O barulho da rua que não existe me dizia para continuar respirando. O ruído
na cozinha me dizia que o rato branco estava comendo, ele é meu sinalizador
cardíaco.
Passa o dia, passa a
noite.
Não sei quantos dias estou
nesse apartamento sem saber sobre o mundo. Evito assistir noticiários, não
recebo mais os jornais. Minha neta não fala mais no café da manhã, meu neto não
reclama mais da manteiga sem sal. Quantos dias se passaram? Eu preciso fazer
minha barba. Vinte dias? O miserável rato branco apareceu aqui faz vinte dias!
Ele come minha comida, rói minhas roupas. Roubou o álbum de fotografia, quem roubou
o álbum de fotografia? Outros seres desprezíveis podem ter invadido minha casa
sem eu perceber. Quem comeria o álbum de fotografias?
Dia e noite.
O rato branco é uma
praga maior que qualquer vírus. Ele entrou sem ser convidado e comeu toda minha
comida. Quer dizer: eu deixei entrar em minha casa. As ferramentas ainda estão
na pia da cozinha. Ele deve ter trazido todos os outros, baratas, vermes e
morcegos. Dizem que tudo começou com um morcego, mas eu tenho certeza de que a
culpa é desse rato. Lá fora o silêncio das coisas mortas, aqui dentro o barulho
do falatório indecente. Não tenho mais televisão, nem quero mais o jornal.
Quantos dias? Que miseráveis dias da minha vida eu perdi aqui sem colocar a
cara no Sol? Sessenta dias no calendário que eu não conto mais, mas eu sei que
são sessenta dias. Minha barba, segurem minha barba e perceberão que os dias
passaram bem lentos. E o rato branco que está escondido em algum lugar, come
metade ou mais, da minha comida; diz absurdos, outros o seguem acabando com minha
casa.
Saudade, pijama e
chuva. Choveu esses dias, não sei quando. Não deu tempo de colocar as plantas lá
fora. Eu também não sei se posso sair. Aqui dentro é mais seguro, disseram.
Aqui dentro é o silêncio das coisas. É isso que deve ser. E quantas vezes eu
devia ter perguntado sobre a solidão? Deveria ter falado mais sobre isso com
meus filhos. Meus netos são todos inocentes, iriam falar qualquer coisa para
que eu ficasse feliz. Eu posso sair para ir até a padaria? Ela ainda estará lá
no mesmo lugar? Tantas coisas se desfizeram nesses anos, tantos nomes que foram
apagados.
Abro o guarda-roupa.
Minhas roupas fedem. Traças não querem minhas camisas, nem minhas meias. Elas
não passam perto das minhas cuecas. Então, tiro o pijama do corpo. Ele estava
impregnado na pele. Banho, ela me disse que eu deveria tomar banho! O pijama é
tirado com dificuldade. Troco de roupa, lentamente e com muito cuidado. Meus
braços estão cansados, minha visão turva. Eu quero comer um pão com manteiga e
um café bem quente. Quantos dias eu não coloco comida na boca? Todos eles me
abandonaram. Minha neta, minha querida neta.
Vou para a cozinha, uma
bagunça espalhada na mesa, o fogão todo sujo. Eu sinto um cheiro de queimado.
De papel queimado. Eu corro para a sala, volto para o meu quarto. O rato branco
estava querendo me matar naquele lugar? É minha casa, eu grito. É minha casa,
minhas coisas. Eu tento procurar todos os inimigos que invadiram aquele lugar
pelo buraco do ralo, pela privada e por debaixo da porta. Todos eles invadindo
minha casa, pegando minhas roupas, comendo minha pele. Eu sinto medo, eu sinto
fome. Eu sinto que o silêncio lá fora, meu grande inimigo, está me matando:
voto qual deles é meu pior inimigo.
Noite e dia.
Que miséria é o mundo
em silêncio. Nem bicicleta, nem carro. Não escuto nem o vento, nem as nuvens.
Que dia eu estou sem comer? Noite e dia, sem o relógio. Olho pela janela e vejo
muitas almas, mas nenhuma viva. Todos estão parados olhando para o céu. Outros
olham para o infinito. Todos parecem olhar para lugar nenhum.
Fome? Não penso na
fome.
Morte? Não penso na
morte.
Só tenho medo desse
corpo andando de um lado para o outro, sangrando pelas beiras, reclamando pelos
cantos; infeliz por inteiro. Que dia estamos, alguém pode me dizer? Hoje é dia
de café da manhã em meio a essa terrível impressão de isolamento, mas hoje
ninguém poderá me visitar.
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