quarta-feira, abril 15, 2020

AO AMIGO IMAGINÁRIO: FONSECA

Havia muito sangue nele, nas mãos e nas pupilas, que brilhavam por causa de qualquer sangue. Do sangue subúrbio, de um lance qualquer de ciúme; ao sangue bem articulado de um crime na classe média rica carioca. Desvendou crimes que ele mesmo decidiu, sem piedade ou engano; seu culpado podia ser óbvio, mas não era qualquer um, jamais o mordomo. Muito sangue espalhado na cena do crime, na mão de azarados suspeitos; limpos no vestido curto de uma garota sedutora e vulgar. O sangue não era sua matéria-prima, mas a violência de qualquer tamanho virava uma história de grande tamanho.
Seus diálogos eram intensos, dizia mais sobre a história que a própria narrativa. Que importa em que ocasião algum dos personagens abrisse a boca, se a sua voz, ou a imaginação da sua voz, era que dava toda a tonalidade da narrativa. Narrar por diálogos aleatórios, descobrir quem somos através de personagens tão diferentes, ouvir de perto a natureza humana sem nenhuma maquiagem, ou pudor; ou esconderijo, ou diz-que-me-disse. Sua história era certeira, rasteira; lendo ao som de Tom Waits, ambos sombrios. Que cor podíamos ver em sua narrativa exceto a cor quase apagada de um fim de tarde já sem brilho.
Conheci Rubem Fonseca quando decidi virar escritor. Decidi que aquilo que ele colocava no papel, ou melhor, do jeito que ele colocava no papel, seria a minha maior inspiração. Não queria copiá-lo, embora tenha feito isso inconscientemente muitas vezes em minhas prosas. Fonseca deveria ter sido meu professor de redação, mesmo sem ele saber. Também não vingou minha carreira, só os textos espalhados por aí sem qualquer sucesso. Mas o que ele pensava sobre sucesso?
Tinha sempre uma inutilidade sua misoginia colocada num detetive sem juízo e perdedor. Até o mais vitorioso dos seus personagens parecia carregar a derrota montada no lombo de uma conquista. Todos, ou quase todos, ou aqueles que eu me identifiquei, mesmo quando ganhavam na história, saiam perdendo. Era o otimismo da vida uma ilusão, ou o pessimismo a realidade? Não sei se o sangue, se o crime; ou se as prostitutas que se perdiam em becos, mas algo nesse cara eu queria ter na hora de escrever a minha homenagem.
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