sábado, março 19, 2011

Texto Introdutório – Questão filosófica: A batalha entre o Céu e a Terra!


Dentro de mim uma batalha se instaura. Parece uma batalha antiga, mas não eterna. A briga que surge quando me vejo no espelho; quando percebo o que parece ser a questão de toda minha existência. Na imagem dois personagens. Dois símbolos contraditórios. Ali, os dois ícones revivem a história, desde os tempos antigos até os dias de hoje. Caim e Abel[1], se misturando na imagem refletida.

Em mim a ciência da concepção da carne e a consciência do espírito criado. Dois irmãos que brigam em minhas escolhas. O que eu sou afinal? De onde eu vim? Para onde eu vou? Nenhum deles consegue responder ao certo. E os dois continuam brigando pela verdade. Ou vivo como Caim ou mato-me como Abel[2].

Afinal, quem em mim é eterno? Haverá essa eternidade ou é a sensação de conforto que tanto buscamos. É confortante saber que nada acaba aqui, mas e a verdade? Criamos Deus ou ele nos criou? Enfim, os dois irmãos ditando a regra entre a crença e o ceticismo, entre o mundo material visível e o invisível mundo espiritual.

De repente, diante do espelho; os dois irmãos desaparecem. Ali eu percebo que sou único, não o único. Existem milhares de pessoas por perto, seus barulhos, vozes e cheiros. Mas não existe no meio de tantos deles igual a mim. Todos sofrem consigo mesmos como eu sofro diante de minha imagem dilatada? Sofro por não saber qual a vida devo ganhar[3].

E mais uma vez os dois irmãos reaparecem: eles representam meus dois pensamentos sobre o mundo, sobre quem eu sou. Não posso detê-los. Eles sempre aparecem com a mesma questão, com os mesmos argumentos. Mas não definem suas respostas. Nenhuma dessas visões, em mim; chegam perto do que considero a realidade.

Caim matará Abel sempre? Qual deles eu quero como assassino? A sensação de Caim, o profano; ou o poder de Abel, o eterno? [4] Caim, que é minha vida material; minhas conquistas, o meu mundo atual; mata todos os dias Abel, minha vida eterna; eu no mundo espiritual. Este mundo eu não reconheço com facilidade, e aquele eu sei o que quer.

E a batalha que parece guerra, me dá uma única diretriz. Responder essa questão é definir o rumo de tudo que eu quero, de tudo que eu preciso, de tudo que eu sonho; quais serão minhas conquistas, o que será a felicidade. Nessa guerra, em que aspectos físicos e espirituais se confundem; devo escolher se sou um ser espiritual em carne ou a carne em espírito?

A noção primária de todas as coisas: onde eu estou nesse tempo e espaço? Num primeiro instante parece que sou esse corpo, que sente fome e sede. Sente desejos. Mas no resplandecer do corpo vejo-me muito maior do que tudo isso que penso ser agora. Devo mesmo ignorar a sensação de que sou mais do que o que me vejo agora? [5]

Ao certo, parece que a convivência da vida me faz desse jeito. A questão que agora pouco me afligia, some. Mas é por um breve espaço de tempo: quando as coisas do dia-a-dia acontecem, desisto de pensar no que eu realmente sou. Mas, de repente, fico paralisado com a questão: Sou espírito que possui um corpo ou um corpo que possui um espírito? E a guerra, e os personagens, nunca desaparecem.

É conveniente vivermos a vida do mundo, sem pensar o quanto podemos nos transformar[6]. É mais fácil esse caminho. Decidir que devemos continuar levando a vida, que por si já basta. Mas não quero as coisas fáceis, quero novamente me olhar no espelho; quero me rever diante dele: quem eu sou afinal? Que conhecimento pode me responder?

Talvez a lógica, logos. Talvez o oposto, Lúcifer. Conhecimento diferenciado entre a crença e a ciência. Saber é muito diferente de acreditar. Por isso sabemos pela ciência e cremos pela religião; e ambos vivem em lados apostos. Quem não quer conhecer a si mesmo, acaba de uma só vez com a charada: a mentira, no entanto, não liberta. “Ó homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo”[7].

Muitas dessas respostas comprovadas, determinadas e positivas não respondem parte de minha dor. Aliviam, decidem. Mesmo quando é o inverso do que esperamos: a ciência não quer deixar dúvida. Mas acaba deixando. Acaba por não responder algumas lacunas que se formam: nós somos maiores que a ciência e a religião, precisamos de mais.

No espelho a metáfora continua. A briga entre os dois irmãos que podem responder que lado eu quero ficar, que lado eu quero percorrer para achar as respostas que me irão satisfazer. A advertência velada para Caim, que decide por um caminho longo que agrada a si mesmo; mas que não é a representação do que o mundo quer. Ou advertência direta a Caim, que vive o mundo visível; fazendo aquilo que é gostoso[8], aquilo que parece contentar todo mundo. Faço aquilo que eu não quero apesar de querer aquilo que não faço, Paulo de Tarso traduzindo toda essa minha angústia em sua frase célebre das Cartas.

Abel não agrada ao mundo, mas mapeia sua felicidade eterna. Caim se satisfaz como mundo, mas sua contemplação é transitória. Caim, que é feliz; inveja Abel. Por essa inveja o mata. Qual a razão desse desgosto com o irmão? Qual a razão do ciúme doentio? Caim mata Abel por esse motivo: eterno versus transitório. E esse o símbolo mais disfarçado em nós, real e provisório se digladiando. O corpo contra a alma. Matéria inveja o espírito. Homicídio do início da minha história, revividos ainda hoje. Mais uma vez eu pergunto: em mim, até quando Caim (matéria) matará Abel (espírito)?

Os personagens poderiam ser renomeados por Jung: Self e Ego. Ego que é passageiro, o denso; a prisão. Ego que educa para o egoísmo; pecado de todas as instâncias do crime da consciência. Ego que é a matéria que não brilha em nenhum ensino prático, que não se transforma como Siddhartha na iluminação de Buda. Ego que mata a vida em Paulo, o opositor de Deus de Cristo no deserto. Ego das passagens das intermináveis horas de Fernando Pessoa. Ego de Rohden: aquilo que é profano, o ego luciférico.

O Self da alma. A suavidade da libertação. O que libera em nós o Reino dos Céus. O Iluminado. O que vive no amor eterno. Na disciplina religiosa, na harmonia espiritual. A contemplação de Deus. A mistura de Deus em nós, nós em Deus[9]. Estamos nele, mas não somos Ele. Self de Abel, que agrada Deus[10]. Self do espírito que vivencia a magnânima vida eterna. Que tudo sabe; “em espírito e verdade” como revelados à samaritana, por Cristo. Self que sabe ao invés de apenas crer. Que tem ouvidos de ouvir e olhos de ver[11]. Que ressuscitamos sempre, depois da crucificação[12] do ego. Self do si mesmo[13]. Self do Eu-crístico que combate Ego-Luciférico.

O material e espiritual: Caim e Abel. Cristo e Lúcifer. A proibição de servimos a dois senhores: Deus e as riquezas[14]. Deus e Mamom[15]. Ego-material e Self-espiritual. Estou como um ego mortal, mas sou um Self imortal. A iluminação, a evolução é o reconhecimento do Self, o abandono da ditadura do Ego.

Essa dualidade já foi pensada no passado, antes mesmo da história contada de Jesus de Nazaré. Dualidade que temos em Heráclito[16], que numa questão de proporção universal nos diz que O ser não é mais do que o não-ser[17]. Poderia sugerir uma briga entre o espiritual e o material, entre subjetivo e o absoluto; entre tantas dicotomias dos pesadelos diários de qualquer filósofo[18]. Sócrates, Platão e os neplatônicos.

E o que dizer dos momentos que precedem o nascimento de Jesus, quando Herodes, em seu Ego-material, tenta manter o seu reino temporário, percorrendo todos os cantos do seu reinado a procura da criança self-espiritual do nascimento de Cristo? [19]. Quantas vezes em nós, que matamos Abel; tentamos também extinguir a manjedoura do nascimento de Cristo em nossos corações? Poderíamos fazer como os Reis Magos, que guiados pela estrela de luz[20], contemplam Jesus com presentes. Reis, como representação de grande poder do homem; e magos como a representação espiritual[21]. Mas relutamos em seguir a estrela, em transformar nossos corações em nascedouro; ou mesmo zelar por Cristo em nós como fizeram os pastores.

E meu corpo continua na indisciplina da mente, dos meus diversos corpos; dos meus desejos e sensações. A batalha que outrora havia começado, continua no meu semblante sisudo diante do espelho. Quanto tempo eu ainda tenho para decidir o que eu quero da minha vida? É complicado: estamos tão acostumados com as riquezas, com os tesouros mensuráveis; com ganhos palpáveis. Nossa mente educada há séculos pelo princípio do prazer e da sensação momentânea.

O nosso corpo e nossa alma, numa batalha sangrenta e dolorosa; como Caim e Abel. Um aniquilará o outro, é o destino. E nessa luta, que escudos podem me proteger? Quais as armaduras que eu devo carregar? Não vim trazer a paz, mas a espada como nos disse Jesus. A guerra da inquietude da minha alma, com a imposição do intelecto, são as diretrizes que me suportam.

Penso logo existo. Mas quem existe primeiro? Caim em mim, brigando pela pedra no deserto, querendo prova de Deus, se jogando no penhasco para ser socorrido por anjos? Ou em mim Abel, procurando a água da vida, a crença em Deus em verdade. O Reino dos Céus em nós mesmos? Vós sois Deuses!

E quando a guerra acabar? O perdedor morto. Abel nunca morre; resiste. O destino de Abel é vencer a batalha. Em Caim o recomeço, a nova chance; a ressurreição descrita em João. Quem não nascer de novo não entrará no reino dos céus, Jesus disse a Nicodemos. Que eu saiba renascer; que em mim habite a pedra que edifica; não o engano que se opõe; como se sucedeu em Pedro antes da revelação da crucificação de Jesus: “Saia de mim satanás, se opondo ao designo de Deus”- Disse Jesus à Pedro naquela oportunidade.

Não é fácil, mais uma vez nos desculpamos[22]. E no recomeço preferimos que a pedra se transforme em pão. Que os anjos nos socorram, quando nos atiramos no abismo para saber se Deus realmente existe. Quando achamos que somos o único, ao invés de únicos. Quando criamos os atalhos de nossa compreensão.

O modelo que não é fácil de seguir, para escolhermos quem viverá da nossa dicotomia; disposta há mais de dois mil anos com Jesus de Nazaré, em suas chagas, exemplos e virtudes. O caminho, a verdade e a vida. Onde o grande mestre nos apronta para a realidade, de que somos eternos, que valemos pela nossa indivisibilidade: Abel sempre existirá, e é ele o escolhido para viver no gozo do senhor.

Jesus de Nazaré, que se transformou em Cristo. Que já sabia desde os doze anos, que a contradição entre ego (matéria) e o self (espírito) tinha uma única solução: cuidar da alma, dos negócios do Pai. Jesus que morreu por nós, não pelos nossos pecados; mas para exemplo de nossa salvação. Jesus de Nazaré que chegou em Cristo, para as várias moradas. Que submisso a Deus, como Abel; soube o que fazer para agradar. Abel do simbólico Velho Testamento; de Jesus do Novo Testamento; ambos transformados em pastores.

E no espelho, em que meu reflexo diz o que eu estou; o refletido responde quem eu quero ser.



[1] Caim e Abel eram irmãos. Apresentados no Velho Testamento como primogênitos de Adão e Eva. Caim era mais velho do que Abel.

[2] Caim (lavrador) e Abel (pastor) apresentam ofertas a Deus. Caim apresentou frutas do solo, Abel apresentou primícias do seu rebanho. Abel agrada Deus com sua oferta.Com ciúmes, Caim arma uma emboscada para o irmão. Caim mata Abel.

[3] “Porque, quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem sacrificar a sua vida por amor de mim, salvá-la-á”. (Lc 9,22)

[4] Passado algum tempo, ofereceu Caim frutos da terra em oblação ao Senhor. Abel, de seu lado, ofereceu dos primogênitos do seu rebanho e das gorduras dele; e o Senhor olhou com agrado para Abel e para sua oblação, mas não olhou para Caim, nem para os seus dons. Caim ficou extremamente irritado com isso, e o seu semblante tornou-se abatido. O Senhor disse-lhe: “Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante? Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te. Mas se precederes mal, o pecado estará à tua porta, espreitando-te; mas, tu deverás dominá-lo.”(Gn 4,3-7).

[5] “Jesus então lhe disse: Feliz és, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isto, mas meu Pai que está nos céus”. Mt 16,17

[6]Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito”. Rm 12, 2

[7] Inscrição no oráculo de Delfos, atribuída aos Sete Sábios (c. 650a.C.-550 a.C.)

[8] A batalha em nós se desenvolve muito pela decisão entre aquilo que é certo e aquilo que é gostoso. Entre aquilo que é trabalhoso e aquilo que é confortante.

[9] Panenteísmo - Todas as coisas estão na divindade, são abarcadas por ela, identificam-se (ponto em comum com o panteísmo), mas a divindade é, além disso, algo além de todas as coisas, transcendente a elas, sem necessariamente perder sua unidade (ou seja, a mesma divindade é todas as coisas e algo a mais). Wikipédia, consulta em 12/09/2010.

[10] Passagem da Gênese Judaica.

[11] Nota do Autor: A cura de Jesus de alguns cegos, coxos, surdos e aleijados; podem ser a representação da nossa própria cura, em decidirmos olhar para a verdade, deixarmos de andar de forma curvada, como se não fóssemos soberanos filhos de Deus.

[12] Crucificamos o Ego.

[13] Inglês.

[14] “Quem não deixar tudo não pode ser meu discípulo!” – Jesus de Nazaré.

[15] Mamon é um termo, derivado da Bíblia, usado para descrever riqueza material ou cobiça, na maioria das vezes, mas nem sempre, personificado como uma divindade. A própria palavra é uma transliteração da palavra hebraica "Mamom”, que significa literalmente "dinheiro". Wikipédia.

[16] Heráclito de Êfeso, filósofo pré-socrático.

[17] Nesta sua frase, Heráclito já definia a dualidade das coisas do mundo.

[18] Gandhi fala sobre o puro e o impuro.

[19] “Venham a mim as criancinhas, pois delas é o reino dos céus”

[20] Nota do Autor: Que pode ser interpretado também como uma luz interior.

[21] Rei é a figura do homem de grande prestigio e Mago de grande poder sabedoria.

[22] A porta pequena.

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