No mundo do rock é muito comum grupos viverem na
órbita de um dos seus integrantes, que geralmente é responsável por toda
criação artística, desde as composições, letras até a decisão pela capa do
álbum. Não por acaso, a figura quase sempre é a do vocalista. Em alguns casos
essa divisão é compartilhada, veja o exemplo dos Beatles. Em outras, o líder
não é tão evidente assim; mostrando sua gerencia nos bastidores; com é o caso
de Iommi no Black Sabbath e do Harris no Iron Maiden.
Legião Urbana é um modelo clássico de uma
associação quase que imediata em relação a essa liderança. É impossível falar
sobre Legião Urbana sem falar do Renato Russo e vice-versa. Principal
compositor, letrista e arranjador, Renato é líder de uma legião, não apenas do
grupo. Os legionários existem, não à-toa. Renato ofuscava todos os outros
envolvidos, ao ponto de uma automática extinção do grupo logo após a sua morte.
Dado e Bonfá como mero coadjuvantes ficaram reféns não apenas das determinações
jurídicas, mas emocionalmente. Como continuar o grupo sem a principal figura? Como
será a criação?
Outros grupos espalhados pelo universo musical já
passaram pelo mesmo dilema. Alguns conseguiram desvincular a imagem desse
líder, continuando a carreira, lançando novas músicas; e a vida que segue. Não
é fácil, mas possível. As novas composições geralmente são novas “roupagens” de
uma ideia central da banda, mas nunca será a mesma coisa. Muitas vezes nem
melhor, nem pior; mas simplesmente diferente. Dado e Bonfá, se pudessem,
continuariam com a banda? Havia clima após a comoção de milhares de fãs? Era normal
continuar ou falta de “respeito”?
Com o tempo, e sempre o tempo, muitas coisas
aconteceram. Dado se atualizou, esteve presente no mundo da música; assim como
Bonfá. Projetos pequenos, projetos grandes; participações especiais, e assim por
diante. Um músico, mesmo no ostracismo, nunca deixa de ser músico. E talvez por
isso, em algum momento da história dos dois; houve uma necessidade enorme de
não deixar a história acabar; ou como diz a própria essencial do rock, “deixar
rolar”. Assim, surgida a oportunidade, e a vontade, em comemorar os trinta anos
do lançamento do primeiro álbum, eis que o novamente o Legião Urbana surge no
mundo musical. Disponível, melhor e nostálgico.
O show em São Paulo me mostrou exatamente isso.
Legião estava disponível para os fãs, aqueles que nunca puderam ouvir a banda
ao vivo. É sempre uma cara de “cover de si mesmo”; mas com algo diferente. A
banda está melhor, tanto Dado como Bonfá melhoraram muito do que eram naquela
época. Alguns solos que não existiam foram incorporados; um peso maior com o
auxílio de uma segunda guitarra; Bonfá com uma vontade enorme de tocar. Em meio
a tudo isso, um agravante na análise: o vocalista. Sim, não pode existir um
novo Renato Russo, não é certo, justo e lógico. Mas seria certo, justo e lógico
o grupo não existir nunca mais? Fica a pergunta para os fãs, eu tenho minha
resposta.
André Frateschi foi escolhido para essa
complicada tarefa. Complicada para quem assiste, mas posso garantir que não foi
para ele. Ator e músico, Frateschi subiu ao palco com jeito de fã, mas com
presença de músico. Estava tão natural ali, cantando bem e com segurança, que
parecia que a escolha tinha o dedo mágico e imaginário de Renato Russo. Em
nenhum momento quis imitar, em nenhum momento quis ser o Renato; mas em todos
os momentos quis fazer a apresentação em sua maneira mais honesta possível.
Deixou transparecer sua energia, trejeitos e jeitos próprios: Renato Russo não
estava no palco, mas não se envergonharia de ver André cantando.
A primeira parte do show era a apresentações na
íntegra do primeiro álbum. E começou numa agressividade que já não víamos nas
últimas apresentações da banda. Som pesado, rock
and roll brasileiro. Duas guitarras (embora a segunda mais baixa), baixo
também corretíssimo (também mais baixo que a bateria e a guitarra de Dado);
nada disso interferiu na apresentação. Primeiro álbum com todos os hits, e a
minha certeza de terem acertado, dessa vez, em escolher um cara não muito
conhecido pelo público; mas muito bom no palco. A segunda parte com alguns
convidados intercalando com André os vocais. Figuras exóticas, figuras
conhecidas; músicos do underground. Tudo muito divertido, mas evidentemente
pouco ensaiado; nada que não aconteça nesse tipo de apresentação.
Apresentação foi nostálgica pois, além da
apresentação na íntegra do primeiro álbum, a maioria esmagadoras das músicas
apresentadas são da primeira fase do grupo. Também de uma maneira geral, músicas com mais a
cara do grupo, pois eram composições que ainda eram determinadas pelos membros remanescentes.
A minha grande frustação foi não escutado alguma coisa inédita, sentir como o
público reagiria com um novo som, novas letras. Dado, Bonfá e André numa única
composição seria um indício interessante de que as coisas não acabariam por
ali, uma apresentação festiva. Minha satisfação? Música mais pesadas que o
habitual.
Foi um show maravilhoso daqueles inesquecíveis?
Não. Um dos melhores que eu vi na minha vida? Não. Foi um show bom. Foi um show
inesquecível no sentido histórico, por tudo que envolvia a apresentação. Não
foi o melhor show da minha vida; mas isso pouco importa para o rock. No mundo
da música é assim mesmo. Para os fãs, Espaço das Américas foi um pedaço do paraíso;
numa transloucada relação metafísica entre quem tocava, quem ouvia; e uma
eventual presença de Renato Russo meio que admirando todo o espetáculo. “Eu sei
que ele está aqui!”, uma fã ao meu lado não cansou de revelar. Para um fã de
música, foi uma apresentação cheia de músicas legais, com uma banda de músicos
muito bons; com a aura de termos no palco duas figuras importes do rock
nacional.
Mas, acima de tudo isso, como um cara que gosta
de música como eu, ficou aquela sensação de que novas criações poderiam surgir.
Músicas de dois caras importantes para o rock nacional, em conjunto com um cara
que demonstrou ter incorporado o espírito do grupo, e com o nome ou não de
Legião Urbana, poderiam lançar novas músicas para tirar um pouco o marasmo
daquilo que estamos vendo e ouvindo no cenário nacional nos últimos anos. Será
minha imaginação?
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