quarta-feira, fevereiro 19, 2014

O nu e o trem


O nu nem sempre é belo. Nu de homens e mulheres, quando repletos de realismo, pior ainda. Alguns gostam de contemplar a realidade. Eu prefiro a imaginação. Prefiro a ilusão. Por isso decidi ser cineasta. Quando eu era mais novo preferia a beleza escondida. Adorava imaginar como era a nudez. Adorava, portanto, mulheres que se cobriam com um recalque admiravelmente sensual. Mulheres que conseguiam esconder seus seios volumosos (ou não). Seus pelos sempre submersos. Tudo pode ser recriado, diferente do quê verdadeiramente é. Essa era a minha grande missão. A nudez, portanto, me tirava o alívio dos sonhos; mas me trazia, muitas vezes, a decepção da verdade.

Não fui um cineasta famoso, e pelos ventos que sopram, nesses dias mais quentes, jamais serei. Vivo de um dinheiro miserável do governo, benção magistral aos novos idosos que, como eu; nunca foram avessos ao trabalho. Sou representante de uma classe injustiçada. Assim como os professores, intelectuais e políticos. Todos nós somos julgados como viajantes do mundo, sem parada e sem trabalho. Cineastas são criticados por aquilo que os outros acham que eles têm; não pelo que eles exatamente são.

Não tenho nada, apenas uma história.

Abro a janela do trem. Ainda era de manhã e os ventos dessa hora renovam qualquer pessoa. Tinha chovido a noite anterior e com isso o matagal em volta dos trilhos tinha um cheiro muito característico e atraente. A brisa úmida chegou a molhar meus óculos (Acessório indispensável desde os meus três anos de idade). Na escola, depois de descoberta a miopia, sentia-me como um adulto inteligente ao passear elegantemente pelo pátio, afinal de contas o objeto era relacionado ao intelecto. Homens de óculos são os mais inteligentes, me disse uma vez uma namorada. Embora não acredite nisso hoje em dia, acreditei por um bom tempo. Acreditei que eu realmente era a melhor e mais poderosa pessoa do mundo, até que o mundo bateu à minha porta, abrindo sem meu consentimento; tirando o meu disfarce.

Aos quinze anos escrevi meu primeiro roteiro. Contava a história de um sujeito que manteria amizade com um camundongo durante anos. Trocavam confidências. Era complicado filmar um camundongo, eu pensava. Talvez tivesse visto coisas desse tipo apenas nos desenhos animados. O camundongo iria morrer envenenado. Veneno colocado pela mãe do protagonista. O que eu queria dizer com aquilo? Não sei. Algumas vezes queremos não dizer nada. Só pensamos nos enigmas e nas considerações de uma obra artística quando ficamos velhos. Críticos adoram esmiuçar um texto, um filme e uma música, tentando descobrir alguma coisa oculta – Eles podem ler esse pequeno texto e não acharão nada. Esse texto é como uma carta, ainda sem destinatário, que narra a minha ida, junto com minha esposa, ao encontro do meu filho.

Não haverá nada a ser explorado. Se vocês querem enigmas, sugiro outras espécies de obras. Crimes, sangue e violência? Estará longe daqui. Vejam a paisagem enquanto o trem se move. Existe algum mistério nisso tudo?  Imagino uma câmera, focalizando entre os dedos o melhor enquadramento. Que bobagem sermos aquilo que pensamos ser. Entrei na faculdade, mas não me formei. Continuo me achando um cineasta, ainda que não saiba absolutamente nada sobre como fazer um filme, como analisa-lo em todos os seus processos. Fui apenas um vendedor de produtos de limpeza. E dessa forma sempre estive perto das melhores histórias que um homem pode viver: as mulheres. Ainda que eu entrasse em algumas empresas, com seus truculentos barbados me oferecendo um cafezinho; era pelas mulheres, nas ruas e cotidianas, que eu sempre fui apaixonado.

“Você sabe que horas eles servem o almoço?”
“Posso perguntar”.
“Você nunca sabe de nada”.
“Faz anos que eu não viajo de trem”.
“Você é um medroso, isso sim.”
“Quem estava com medo de entrar no trem?”
“Não estava com medo, você sabe bem. Eu tive um pressentimento”.

O trem viaja mais umas duas horas até que as portas do restaurante são abertas. Com dificuldade de toda aquela trepidação, com a nossa já falida coordenação motora; conseguimos chegar numa mesa vazia. Pedimos os pratos. Eu me sentia como uma criança novamente. A última vez que experimentei uma comida servida num trem eu tinha treze anos (e ainda não usava óculos). Era complicado o movimento da mastigação. Também era para beber, conversar e desistir de conversar. O barulho naquele vagão era enorme, o que dificultava o entendimento entre mim e minha esposa. Por horas fingimos conversar. Fingimos conversar quando estamos vendo a novela. A televisão nos trouxe uma espécie de delírio quase esquizofrênico.

O trem para.

A estação estava vazia. Um vendedor de pipoca havia se escondido da chuva que tinha acabado de cair. Um cachorro vira-lata do outro lado, olhando para a vida como se nada estivesse acontecendo. Na verdade nada acontece. Nada acontece diferente de ontem. Nada diferente de hoje. Nada diferente amanhã. A vida é uma sucessão de acontecimentos previsíveis e ao mesmo tempo ignorados. Damos valor apenas ao que não conseguimos compreender, aquilo que supomos perceber. A verdade é que vemos a vida como a nudez: supomos ver os corpos onde há apenas as roupas.

Por isso gosto do cinema.




(Texto 1 de - Aguarde-me com Sorriso)







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