sábado, outubro 10, 2020

SÓ CRIANÇA ENTENDE



Abro a janela. Sol ainda tímido. Uma janela da percepção, um cheiro de café feito na hora. Pulo da cama, os pés descalços. Quanto tempo não sinto o chão gelado? Corro divertido até a sala, ainda não há qualquer presente. Então, volto para a cama. Em algumas oportunidades é bom ter preguiça. Não é pecado, é prêmio. Depois de uma semana de trabalho, acordando cedo, dormindo tarde; almoçando com os olhos para o relógio; não é preguiça; é prêmio. E durmo mais um pouco, e continuo sonhando. O dia das crianças. O dia da criança que ainda tenta romper minhas entranhas. A criança em mim, que não tem a mísera oportunidade em chorar como criança, rir como criança; esperar um presente de dia das crianças. Um dia em que podemos tentar absorver a alegria do mundo, não à distância, mas aos nossos olhos. Continuo sonhando.

Uma criança então se aproxima, ela não é de verdade. Bem, é de verdade, mas não para esse mundo. Ela sorri e me entrega um bilhete. "Tio, leia depois que acordar; sonhando a gente não escolhe o melhor da vida!". Ora, uma criança dizendo ao contrário tudo que eu pensei até agora: sonhar era essencial para ser feliz. Que sonhar resolvia a vida (que, às vezes não é tão convidativa). Sonhar é bom, realizar melhor ainda. Sonhando, e só sonhar, deixamos a vida passar em branco. A criança, que não me disse o nome, parecia uma criança conhecida, próxima; amiga. Criança que não era menina, não era menino. Criança que não se parecia com qualquer criança que eu tenha visto. Ela vai embora, assim como veio. Eu dormindo, abro a janela e o sol ainda tímido.

Então, corro para a sala. O presente estava ali. Era um presente que não tinha um embrulho, não estava escondido. Presente que estava comigo todos os dias de minha vida, desde o meu nascimento. Então o Sol que aparece. O cheiro de café e o pão quente. Ponho os pés no chão, pois é maravilhoso sonhar com os pés no chão. Vou recebendo de bom agrado, todos os presentes, todas as lembranças; tudo que em mim é certo. Vou recebendo a maravilha de poder aprender, escolher, errar; chorar, sorrir, sentir; sentir-me criança; adulto, velho. Vou receber meu presente, de dia da criança; que só criança pode entender...


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sábado, outubro 03, 2020

O RESTO DEIXO POR AÍ

 

O rádio com chiado.  Nenhuma música brega,  ninguém dando notícia ruim. Voltei para casa com as pernas trançadas: Recife,  estou dançando frevo! Dois goles, ou mais,  não sei ao certo. Cheguei e pedi uma cerveja, estava chovendo.  Sai sem cerveja,  estava nascendo o Sol. Luz e escuridão,  noite e dia.  Cheguei em casa e liguei o rádio: estava com chiado.  Não aguentava mais ouvir minha voz na cabeça solitária dizendo aquilo que eu queria fazer,  mas não fazia.  


Queria um lugar menos poluído para respirar e não ter que subir tantas escadas. Chego ofegante sempre, quase morto. Morro todos os dias a tortura de buscar o pão para o café da manhã. Pão na chapa,  manteiga com sal e um copo de café com leite.  Mais café que leite  assim como feijão embaixo do arroz.  Não gosto do calor,  mas gosto de bebida quente pela manhã.  Gosto pouco de bebida gelada,  talvez só cerveja.  E o rádio? Lembrei do rádio. Tiro da sala, levo para a cozinha.  Tocando Janis: nunca confie num rádio que só pega na cozinha!


Ela canta: Whoa, I need a man to love me! Oh, maybe you can help me, please. Why, I need a man to love. Seguro a frigideira, a goma de tapioca,  um ovo com casca branca.  Janis não namoraria comigo naquela condição.  Rádio que só pega na cozinha e ovos brancos? Eu não confio.  Mas deve ser a bebida ontem, eu estava sem sorte. Hoje continuo sem sorte.  Amanhã eu tenho prova na faculdade,  mas estou com muito sono para estudar.  O rádio volta a chiar. 


Pego aquele maçaroca da dentro da frigideira e tomo meu café-da-manhã olhando pela janela,  uma cidade que não quer me dizer nada.  Sem nenhuma nuvem no céu, um calor que arrepia a coluna,  derrete toda pouca motivação.  Que horas cheguei em casa? Ninguém sentiu minha falta. Nenhum céu,  ninguém no céu.  A vida,  às vezes, gesticula algum recado,  mas hoje,  assim olhando o horizonte,  sou tão rádio,  que ninguém pode confiar.



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terça-feira, setembro 29, 2020

Página 76

 "Tinha preocupação com o corpo,  a estética e a sedução.  A juventude carregava o brilhantismo da  conquista. Mas, ao mesmo tempo,  tudo é tão vulgarmente belo, que da beleza em si pouco se esperava. O tempo é o inimigo oculto que  destrói toda essa insuportável contemplação do corpo. Vemos, aos poucos,  que não só a pele se renova,  jogadas pelos cantos da casa. Mas somem também músculos,  cabelos e brilho no olhar. Da pior experiência que tive,  não ter café da manhã com bacon foi a mais horrorosa.  Vivo,  hoje,  prefiro passar longe do espelho. Ignorar álbum de fotografia.  E jamais pensar no corpo, mas só torcer para acordar vivo... "

quarta-feira, setembro 16, 2020

A PRAIA NUNCA ESTEVE TÃO LONGE

 


Ponho os pés na areia, cada passo uma vitória. Não, eu não sofri nenhum acidente que me impossibilitasse qualquer movimento. Ando de forma normal, mais lento de quando era mais novo. Um pé de cada vez. O vento, o cheiro e o barulho. O sol ainda não era quente, mas já sentia o calor na pele, a boca seca e uma ardência nas costas. Não era o dia mais quente daquelas férias, mas era o dia mais bonito de todos.

Um pé, outro pé. Umas duas crianças passam correndo por mim. Saem em ziguezague pela praia, chegando em poucos segundos na água. Eu quero curtir cada minuto até que a primeira onda me atinja em cheio, quase me derrubando no chão. Então, passam as mães, transloucadas atrás dos filhos. Eu estava sozinho, pois sempre sonhei sozinho. Nos meus sonhos, quando não estou em preto e branco e sozinho, estou apenas sozinho. Tem sonho que eu não lembro, mas aquele era bem real. Então, pé ante pé, vou sentido o vento, bebendo as gotículas daquela água salgada que bate nos lábios, como enamorados; tão decididos.

Passo por uma barraca velha e abandonada de pastel e batida, de cerveja e água gelada. Umas cadeiras dependuradas, guarda-sol enferrujado. Não era abandonada, tinha uma senhora tomando conta, mas era melhor que não tivesse ninguém, seria a desculpa do desleixo. Ando devagar, passo pelas mães que estão esparramadas na areia, delicadamente seus corpos distribuídos no terreno desnivelado. Continuo andando, embora uma troca curiosa de olhares.

Passo pelas crianças, tão barulhentas.

O primeiro pé que chega na água é o direito, tenho inúmeras superstições, mas o pé direito é o que mais me incomoda. Algumas vezes chego a me atrapalhar no passo, quase caindo, quando tenho que entrar em algum lugar, ou sair dele, com o pé esquerdo. Esquerdo jamais. Então, com o pé direito a primeira onda, os dois pés a segunda; o corpo a cintura, depois o corpo e a mente, a alma e tudo que precisava ser liberto. O sol eu não via, mas o mar completo estava bem na minha frente, em todo o corpo; e eu já não tinha mais tanta vontade de sair com o pé direito, ou esquerdo.

As crianças, ora. As mães, ora. A senhora, ora. O tempo, ora. Que férias, ora.

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Não saber: o meu realismo

 

Não há nada melhor que não saber. E se chega a essa conclusão, sabendo. Procura-se mais, mais se quer saber. Não há nenhum contentamento quando chegamos num local do conhecimento, preciso que é. Pois, além dele, sempre haverá alguma coisa falha, uma decisão inconsistente, determinada ciência incoerente. Sim, eu passei as minhas férias lendo, estudando e escrevendo. Eu não tinha para onde ir, nem lugares para visitar; pois tudo está fechado, ou parcialmente fechado, ou não querendo de fato receber gente.
Eu pensei uma vez: se eu estivesse numa guerra, escondido dos ataques inimigos; visto não ser um homem prudente que luta contra qualquer um que seja, como manteria meu tempo sem ficar louco? Primeira coisa: cuidaria das minhas plantas para ter o quê comer. Segundo, cuidaria dos animais, caso a coisa se complicasse de vez com a guerra. Terceiro, zelaria pelas pessoas confiadas à mim, dando-lhe segurança. Quarto, escreveria um livro contando minha história na guerra, ou fugindo dela. Quinto, iria ler todos os livros que pudesse.
As três primeiras coisas são bem específicas, a quarta eu fiz parcial, escrevendo algumas crônicas sobre a pandemia que foram recusadas - e até hoje eu não entendo o motivo - e quinto, li muitas coisas, estudei tantas outras; eu me atrevi até dar aula, coisa que me parecia sem cabimento em qualquer época. A pandemia foi algo que me assustou, mas também deu um certo limite a minha mesmice: eu precisei inovar, ainda que não de forma completa o meu "eu tão inferior".
Assim, chegando ao final das minhas curtas férias, não posso dizer que foi um desastre completo. Em outras épocas eu me sentiria satisfeito em assistir alguns filmes, ouvir música ou mesmo escrever algumas bobagens. Hoje eu quero mais, quero um pouco da inibição dos jovens, da imprudência das crianças e do dinheiro dos milionários. Eu não posso mais ser as três coisas, por isso devo me contentar com um novo elemento que está bem nítido em minha atual fase existencial: o realismo.
O realismo me diz: acabou a farra, segunda acordo cedo.
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sábado, setembro 05, 2020

Retomado, recriado: há reputação?

Nem sei ao certo, busquei os poemas que estavam espalhados por aí e resolvi postar todos aqui. Eu tinha largado mão, meio que sem motivo de continuar. Também não tenho motivo nenhum para retomar as postagens. Mas, nem sempre as coisas são completas na finalidade, às vezes, como agora, são boas mesmos quando meios.

Então, busquei alguns textos e publiquei. Não foi uma tarefa fácil, e acho que ainda não acabei. Escrevo todos os dias, ou quase todos, nem tudo é publicado, nem tudo presta. Também aqui, agora com essa pesquisa, posso dizer que escolhi os melhores. Apenas pesquisei nas diversas fontes e trouxe para cá, do jeito que estavam. Alguns são ruins, mas eu sou suspeito. Tomem suas considerações.

Não estou, portanto, recriando esse espaço. Talvez ele continue sendo ignorando sistematicamente. Isso não é importante, pois penso que um dia, ainda que não esteja aqui para saber disso, os poemas serão lidos e apreciados. Ou não. Não sei como será minha reputação, ela importa, mas não me define.

Assim, segue mais uma porção de textos, poemas e reflexões, para quem quiser, para quem não quiser também. Eu preso a liberdade, liberdade que não tenho dos meus textos, agarrados em mim, mesmo aqueles dispersos...



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Feliz dia do Escritor


" ....e eu preciso de um livro.

Não da biblioteca que está na estante.

Mas um livro publicado.

E assim, e só assim, posso me dizer escritor.

Não adianta milhares de palavras, conceitos; sentimentos. Não adianta tinta, lápis; folhas e folhas, se não existir o livro.

Não há regra, mas há modo.

E sem modos, não sou escritor.

Mas, ainda, escrever por si, já é o bastante. Dizer nos muros. Dizer nas entrelinhas. Dizer no rascunho. Dizer aquilo que insistem ouvir, dizer ao mundo aquilo que ele pensa, traduzir suas ações; requerer seu amor: isso é de escritor.....

.... E nisso, satisfaço-me."



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PÁGINA 12

 "... não sei o quanto posso estar errado. Na verdade, procuro não quantificar a situação; mas qualificar os melhores desvios. Errar é humano, errar sempre ainda mais. Errar e descobrir que errou acho que é divino. Então, eu acho que cometi alguns erros. Mas não posso dizer que os não faria novamente. Descobri que são erros, pois os cometi. Poderia ter descoberto por olhar os outros, pela boca dos outros; pelos sonhos dos outros. Mas ai o erro não seria o mesmo, seria um erro que observei, julguei e evitei. Mas o erro meu, aquele que eu cometo por inquietude, indisciplina e quem sabe por maledicência, esse é meu mesmo; em grau, número e cor. Não é um erro observável, mas um erro impregnado; do qual terei que retirar ponto a ponto do corpo. Pode ser que eu coloque uma tatuagem por cima do estigma, pode ser que eu tente arrancar com as unhas, como quem coça sem parar; mas pode ser que eu deixe a marca lá no corpo mesmo, para refletir pela posterioridade, refletir que eu posso errar; embora não deva....."

Ontem e hoje: faça-o


Ontem e hoje. Todos os dias do ano que já chega ao fim. Fragmento das memórias que prefiro deixar para o passado. Esquecer os dias que não quero mais. Para mim o ano foi pesado. Um peso de coisa que enrosca no fundo do oceano, de lama que gruda na pele e de tropeçar na sujeira espalhada pelas ruas. Um ano pesado em que lembranças ruins foram mais ruins, lembranças boas foram mais saudades; momentos em silêncio e reflexão foram de nostalgia. É um pouco egoísta tudo que estou dizendo, mas é algo que cada um carrega um pouquinho em si; como se a coletividade da vida desse maior sobrevida a toda nossa insatisfação. Toda essa tristeza que andamos enfrentando, estamos de algum modo enfrentando juntos.
E se ontem o texto foi de esperança, hoje ele é de agonia. Mas amanhã, amanhã é outro dia.
Ontem eu vi gente alegre, hoje estão todos tristes. O time que é campeão que não é o meu, mas todos estavam vivos. De repente eu me vi tão impotente em não saber compartilhar a alegria daqueles que eu quero bem (Naquela hora a rivalidade era compreensível). A sua vitória não é a minha vitória, mas como é bom fazer piada e chorar e sorrir e tomar umas e outras e soltar rojão por coisa tão sem importância como é ser campeão de futebol. Sim, pois ser campeão é importante; mas estar vivo é muito mais. Então, no ano que para mim teve alguns lampejos de alegria, por motivos egoístas que deixarei em segredo; a notícia de um desastre, e mais um desastre que acontece no mundo; traz novamente uma reflexão: ganhar, perder, número de títulos; gols e o ídolo é tão importante; mas não é mais importante que ter amigos; que saber tolerar o adversário em sua vitória; curtir também a vitória do outro.
E se ontem o time que eu torcia não era vitorioso, hoje é o time que não torço que me faz pensar em como ganhar a vida...
Ontem e hoje, amanhã é outro dia. O mundo acabando e o peso do ano onde aconteceram tantas coisas lastimáveis. Um ano nebuloso, onde o futuro parece tão distante quanto ilegível. Mas o ontem e o hoje, o ano; não estão determinados em nenhum lugar da alma. O agora que é hora da mudança, de deixar de lado a monotonia da vida e ser feliz com todas as possibilidades possíveis. O ano que não começa daqui alguns dias, mas começa exatamente quando decidimos ganhar o jogo, jogando com nossas regras e nossas atitudes.
E se ontem não foi bom, um dia tenho certeza que será.


29.11.16

PÁGINA 85

Duas tentativas formaram minha frustração: nada mais além disso. Não foi preciso recomeçar o jogo, nem remontar o tabuleiro. As peças não fazem sentido, nem as regras. Sempre odiei as regras, mas as do tempo fui obrigado a seguir. Olho o rosto cansado e as rugas, olhos os pelos mais finos e claros. Minha pele enrugada e os dentes frágeis: é tortura comer um pão amanhecido sem molhá-lo no café com leite. Mas qual o sentido disso tudo? Qual o sentido de acordar cedo e olhar para o dia chuvoso? Não há sentido. E quanto menor o sentido, mais graça existe na vida. Jogo o pão picado na xícara, com uma colher vou saboreando o gosto daquilo que eu não tenho mais gosto, mas adoro continuar comendo...