terça-feira, abril 22, 2014

A trama do décimo andar


Caiu de uma altura, estatelada. Caiu sem asas, jogada por si; vontade própria, sem qualquer intermediário. Caiu do décimo andar, traumatizada queda; para os ossos e para o restante do corpo. Os olhos olharam o horizonte, as mãos pegaram o ar, inegável paisagem maravilhosa, aproximando-se do tão longe. O asfalto no chão imóvel. Ela caiu por algum motivo contraditório, que as autoridades ainda restarão explicar. Eu vi tudo, como testemunha, sem querer; mas que na minha indecisão, sem tempo de chegar os olhos: o corpo que cai. De susto eu observei tudo.

Não era, dentro da minha percepção quase imaginativa, uma mulher feia. Nem estava numa torre, num filme qualquer de Alfred; uma donzela indefesa. Era uma mulher loira, de aproximadamente quarenta e poucos anos. Sem filhos, creio. Pouco sei sobre a mulher e saberei muito menos se não noticiarem nada sobre ela nos próximos capítulos nos telejornais. Em instantes as sirenes, bombeiros e policiais; médicos para caso de um milagre. Alguns ainda esperam um respiração ofegante, como que um corpo com vida, naquele chão ensanguentado. Mas não há vida, nem havia quando ela caminhava assustada rumo ao topo do prédio. Consciente ou não de sua decisão suicida.

Talvez tenha se jogado por causa de um amor não correspondido. Acho que essa probabilidade uma das mais desinteressantes, pois o amor, para a maioria das pessoas, passou a ser um passatempo dos menos intensos. Não existe mais sofrimento na falta do amor, pois o tempo, encarregado de curar tantos deslizes, também trabalha pelo bem do amor; que num lance infortúnio, no metrô ou no supermercado, traz o remédio. As pessoas não perdem mais a cabeça por causa de um amor. Perder o bom senso, o respeito; a dignidade. Mas a cabeça? Não, isso não. Ela não se atirou do décimo andar por causa de amor, tenho certeza. O policial olha bem de perto, os olhos esbugalhados e assustados da mulher.

Morreu por descuido? Talvez. Outra hipótese que projeto durante os segundos posteriores à cena. Que critérios eu teria para definir a morte daquela mulher se nem a conhecia? Não tinha critérios nenhum, nem deveria supor a morte como fuga. Podia ser descuido, penso mais uma vez. A mulher olhando para as nuvens que se formavam naquela tarde de Sol, e de repente: queda. Deixou filhos, maridos e uma cachorra acostumada a dormir no sofá da sala. Ela tinha cara de uma mulher rica, bem cuidada e perfumada; apesar de não ostentar qualquer joia. O policial isola o crime, como se o crime fosse um crime. Fotos e mais fotos animando a paisagem dos jornais impressos na manhã seguinte: alguns se apegam as imagens, outros as palavras.

Fiquei vários minutos sem palavras. Fiquei ali, como se fosse o meu corpo caindo daquela altura. Senti o medo da morte, senti o medo do prédio; que por alguns momentos parecia se sacolejar de grande euforia. Nem sempre algo concreto pode ser tão abstrato. O prédio como quem mantém o poder sobre a vida e a morte, em seu décimo andar; mais ou menos espaço relevante do coração, caso ele fosse humano. Mas ele não é. O prédio não têm pés, nem olhos; nem cabeça. Mas naquela hora, ou melhor, naqueles segundos; ele parecia vir em minha direção. Quer me esmagar também? Quer acabar com minha vida? Todos os outros prédios olham sem querer qualquer interferência, passivos diante do assassinato. A mulher continuava imóvel.

Quantos minutos o meu pesadelo? Quantos anos de sofrimento da mulher? Não sabemos, nem suspeitamos. A mulher morta, os policiais isolando a queda; o sangue, o desespero de todos aqueles que viram ou não viram a mulher se atirando do décimo andar. De qualquer forma, ainda que houvesse qualquer explicação, nada fazia sentido. Deixei a morte de lado quando vi de perto o que a vida pode fazer com as pessoas.

Um dia, uma noite; acovardei-me diante do prédio - antes daquela mulher - e para nunca mais.





terça-feira, abril 08, 2014

A hora


Que farei nessa hora, uma hora.
Tenho exato, a partir, ficar.
Uma hora, todo o tempo de uma hora.
Comerei o almoço.
Assistirei parte de sua estreia.
Farei nada, além da vida.
Tenho uma hora, que farei?

Olho para o relógio e ele parece parado.

Ligarei em uma hora, o final de tudo.
Pensarei, em cinquenta e nove minutos.
Decidirei, de agora, menos uma hora.
Que farei para passar esse tempo que demora?
Ficarei em silêncio (se puder),
Rir da vida, senão chorar, preso; ainda.

Olho pela janela e o relógio parado.

As cores também paradas.
Todos sentados em seus afazeres,
Mas eu preciso que uma hora, de agora,
Começará o acabar mais rápido.
Como sobreviver uma hora?
Considerando paradoxo terrível do tempo:
Quanto mais ele passa, menos eu liberto.
Mais ele passa, menos um pouco eu morro.

Olho para o relógio e é mais um dia que vai embora.















segunda-feira, abril 07, 2014

O desafio da própria morte

 

A antítese do passado, o futuro.
Que trás desse dia de luto
a insuspeita do tempo.
Pudera reverter as horas,
nascedouro de hoje a morte,
até o momento presente.
Foice de ponteiros desatentos,
correndo o inverso da carne,
em todo envelhecimento.

Que badaladas inflem a pele
Rompendo as rugas dos anos
chamando de volta ao corpo, os pelos.

E no retrato do recomeço,
a campana violada, onde velas,
despropositais, velarão as flores
murchas ao vento.
Ao contrário da morte,
diminui a experiência dos tormentos,
como parto desalento de tudo.

Renascer de novo ao ventre da mãe,
desconfortável ambos como estupro.
Nascerá em mim a conformidade dos anos,
como a vida que morre em minutos,
e sonhos que seguem a eternidade.
A tese do futuro, nesse poema translúcido,
desenvolve aos dias de glória da vida, o luto.



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A imensidão dos poemas

 

Perdi a imensidão dos poemas.
Aqueles, que rompiam horizontes.
Hoje, e quase indecente, voltam:
Retomam,
Repetem e
Desrespeitam-me.
Estagnam-se,
os mesmos gestos,
Numa única mensagem.

Não servem mais a nada.

Que construção lateja, então?
Nos sonhos do mundo?
Pois traduz, ainda, palavras
Criando-me na vastidão.
Qualquer mensagem,
Nem demais,
Quer leiam indecisos;
Os poucos que revejo.
Onde há deles em mim,
Está também o coração.

Mas não serve mais de nada.

Que rimas, poucas, fúteis,
onde transbordam músicas
de ontem, até hoje, os acoites
De uma recitação que nunca houve.






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terça-feira, abril 01, 2014

Comida de boteco e o azar do copo cheio

 

Antes de vocês de vocês chegarem aqui, eu estava bem acompanhado. Era uma mulher alta, cabelos negros e um senso de humor incrível. Ela foi embora depois de tomar uma bebida. Estou com fome, ela também estava. Vai acreditar que com a fome se brinca? Eu pedi dois ovos, aqueles coloridos. Pedi uma garrafa de cerveja também. Algumas vezes eu tomava vermute, mas hoje não era o caso. Ovo colorido é culinária de boteco. Quanto mais colorido melhor. Levantei da cadeira e deixei o copo na metade. Dá um azar danado uma coisa dessas, vocês sabem.

Viu bebum se machucar em via pública? Bebum tem santo forte. Anjo da guarda, guardião; sei lá quais nomes para a proteção. Quase todos os bebuns fazem a coisa certa: não deixam o copo cheio no balcão. Volto para beber o resto da minha cerveja. Que diabos fizeram com o meu copo? Estou marcado pela eternidade! Eu sabia que o destino seria cruel comigo. Um copo largado no balcão! Ninguém sai ileso a tamanha superstição.

Num canto escuro um grupo cantava um rock conhecido. Gostava daquele lugar por causa da música. Bebida gelada tem por toda parte, mas música boa? É quase um milagre divino. O barman se aproxima, nós nos conhecemos de vista, mas eu não sei o seu nome. Cinco anos frequentando o mesmo lugar e não fui capaz de perguntar o nome de que me servia. Que falta de consideração a minha.

“Qual o seu nome?” – Eu começo.
“Tá brincando?” – Ele.
“Tenho cara de quem está brincando?”
“Você bebeu um bocado”
“Eu reparei a pouco que não sei o seu nome.”
“Meu nome é José.”
“Prazer, José.”
“......”
“Meu nome é Carlos.”
“Eu sei que seu nome é Carlos. Também sei que é filho de Joelma e Francisco”
“Oras.”
“Quer que eu te leve para casa?”
“Não quero que me leve para casa, quero apenas terminar minha cerveja. Onde você colocou meu copo? Voltei aqui por causa do meu copo”
“Você chega aqui todos os dias e faz as mesmas perguntas.”
“Eu sei que venho todos os dias.”
“Mas não sabe que toma apenas um refrigerante, que você insiste em chamar de caçulinha?”
“Hã?”
“Depois pede dois ovos, os mais coloridos possíveis, como se a casca desse sabor diferente.”
“Como?”
“Depois reclama da música alta, dos guardanapos ásperos, da falta de fio dental. Não quer palitos de dente. Não sei qual motivo dessa exigência.”
“Isso é ultrajante.”
“Sua palavra preferida.”

Peço mais uma cerveja e não dou muita bola para aquele sujeito me dizendo barbaridades. A música não é tão boa assim. Nem posso dizer que prefiro fio dental. A cerveja está gelada, mas confesso já ter bebido cervejas melhores. É claro que não sou um especialista, mas tenho meus gostos pessoais. Refrigerante? O cara só pode estar brincando com minha cara. Nunca vi um cliente ser tratado daquele jeito. Não voltarei mais aquele lugar, é uma promessa.

Em relação a cerveja: Prefiro as inglesas. A música e a cerveja inglesa são as maiores conquistas da humanidade. Uma vez namorei uma garota de Londres. Ela falava mais ou menos o português, pois seus avôs eram de Lisboa. Existe sim grandes diferenças entre o português falado em Portugal do resto do mundo. A língua nos atrapalhou um pouco. Terminamos depois de alguns meses. Ainda sinto um pouco de saudade. Tenho certeza que seria feliz com aquela garota.

“Carlos, está chorando de novo?”
“Quem lhe deu essa intimidade?”
“Quer que eu te leve para casa? Não vou perguntar de novo.”
“Está tarde, vou tomar do mais uma.”
“Mais uma e chega.”

Ele me traz a cerveja gelada. Da um azar danado sair do bar sem tomar uma saideira. O sujeito me carrega nos ombros. Estou visivelmente embriagado. Não queria que meus vizinhos me vissem daquele jeito. Na minha idade, chegar carregado é vergonhoso. Ele me coloca na cama. Rezamos juntos, assim como ensinei meu filho. Ele me cobre, acende um abajur com luz amarela -  Tenho medo do escuro, tenho medo que Deus me abandone - Ele sai do quarto:

“Boa noite, pai.”


Aquele sujeito parecia realmente conhecer o sujeito que não mais se reconhecia.