sexta-feira, junho 15, 2012

Espectro e o medo da morte




Cometi um crime. Um crime grave, sem dolo.
No confessionário ninguém me ouve, comenta-se.
O crime de morte, aos poucos,
num enforcamento.
Meu pescoço dependurado, no trilho preso entre rodas.
Matei sem querer, meu pobre tempo de vida.
E agora é tarde, fui surpreso nas questões:
Onde estive?
Para onde eu vou?
Choro sem resposta, consentindo o pecado.

O meu corpo estava ali, ia e vinha.
Mas por momentos eu percebi que ele não
Ia de lugar nenhum, nem vinha de lugar nenhum.
Não existia ali qualquer história.
O defunto, que sou eu, naquela imagem;
sempre esperou à margem, as pessoas passarem.
Passaram paixões, rancores.
Passou por mim uma mulher.
Um homem de chapéu preto e cabelos brancos.

Todos eles me disseram: Ei! Não venha por aqui!

E eu não fui.
Eu não errei o caminho, mas também não percorri.
Matei sem querer, minha pobre coragem pela vida.
E a faca na minha mão.
Cortaria até sangrar?
Não era preciso, o corpo não vinha, nem sabia onde estava.
Moribundo esperando, eu na imagem derrotada.
O crime não foi evidente.
Mas deixou testemunhas: todos em minha vida são testemunhas
do crime que cometi.
O trem chegando, a janela aberta; a corda pendurada.
Ligo o rádio, prefiro não ouvir os gritos.
Deixará uma carta?
Tantas cartas já foram deixadas em enigmáticos poemas.
E o mundo tão decepcionado não vai chorar.
Não quer chorar.
O mundo passa, vai passando; as pessoas insensíveis.
Aquele dia fazia frio, mas eu me dispus a total nudez:
Preciso de ajuda!
Mas o vento, a noite; a lareira: acolhem pessoas na sua
própria solidão consistente.
Preciso de ajuda!

Todos eles me disseram: Ei! Não venha por aqui!

O trem passa, as janelas abertas.
Vejo uma garota de cabelos loiros, longos.
Olhos claros? Não reparei.
Ela não me conhecida, nem fala minha língua.
Ela veio de um lugar distante, muito distante.
Desce sem mala, sem aviso prévio.
Onde estou?
Para onde vou?
Ela ri da minha pergunta, ela também não sabia.
“Não sei, mas você pode vir comigo!”
E eu não fui.
O meu corpo estava ali, mas minha mente
não sabia para onde ia.
Ela sorriu e foi embora.
Talvez um anjo, talvez um demônio.
O meu sorriso sumira, meus olhos se entristeceram.
O mundo passando, as pessoas insensíveis.
Eu desnudo, o corpo mutilado em palavras.
Deixarei uma carta de despedida?
Para onde eu vou? Ela vira o rosto e não sabe a resposta.
Um bando passando por mim, pássaros ou morcegos?
O vento gelado, o frio na espinha.
Tenho medo de dizer o que eu sinto, pois nesses dias
eu não sinto absolutamente nada.
Posso ir com vocês?

Todos me responderam: Ei! Não venha por aqui.

De repente eu sou criança, ainda choro de fome.
Choro de frio, de medo, de solidão.
Choro pelas noites em claro e as tempestades.
A chuva nunca me causou medo.
O meu sorriso aparece, mas ninguém está comigo.
Velho, mulher e a garota.
Os pássaros não cantam, nem morcegos fazem barulho.
A corda pendurada, o trem chegando.
Preciso de ajuda.
Mas não quero dizer nada sobre isso.
Deixo a carta, mas indecifrável.
Não quero que ninguém vá comigo.
O meu corpo cansado, a mente derrotada.
Onde estou?
A minha risada sobre a vida não diz tudo.
O mundo vai passar depois disso, tudo passa.
A história, o defunto e as imagens.
Mas não posso chorar, eu sei.
Mas choro com pecado, na consentida resposta.

Todos me pediram: Ei! Não se pendure ai!

quinta-feira, junho 14, 2012

Livro aberto


 

A visão da glória, eu em passos lentos.
Voando ou nadando em mares claros?
O barco me arremessa longe, tenho medo.
Quem segura minha mão?
Pé ante pé, ando num quarto escuro.
Uma luz da vela no criado mudo:
O livro está pela metade.
O livro da minha vida está pela metade!
A visão, ainda que certa; é tão confusa.
Quem me guiará? Ando perdido.
Minha história não está ali, morreu.
Morreu no começo de tudo, no choro.
Morreu na primeira queda, joelhos sangrando.
Morreu na primeira fruta roubada, no beijo,
No sexo, no porre e no primeiro deserto.
Voando em mares claros.
Quem segurava minha mão?

Uma caneta e o livro aberto: a minha história
está inacabada nas páginas passadas.

E fecho os olhos, e a visão da glória.
Ando em passos lentos nesse quarto escuro.
Nado, vôo? A janela aberta pela metade.
O livro da minha vida perdido.
Morreu suas letras, nos joelhos sangrando.
Minha queda; meu sexo, o beijo roubado.
Voando em sonhos escuros,
O deserto com um céu claro.
Quem se atreve em minha mente?
A visão, ainda confusa; tão incerta.
Morre minha história, sem passado.
Morreu o futuro na primeira queda.
O primeiro porre, o mar em volta.
O quarto escuro onde ficava meu choro.
A luz da vela, que era minha metade.

Uma caneta e a história inacabada:
O livro está aberto.

segunda-feira, junho 11, 2012

Nosso reencontro


 

E não era mesmo, era? 
Fiquei quieto, esperando a resposta.

Não precisa, sem argumentos;
melhor ficarmos em silêncio.
Estamos no terceiro copo?
Bebo mais quando é inverno.
Seus cabelos continuam lindos.

Tenho pequenos argumentos para dizer que estou com saudade
e grandes desculpas para não voltar para a sala de jantar.

Já pediu o prato? Eu sei, precisamos conversar.
Mas tanto passado, tanta história;
você continua estranha.
Somos pessoas estranhas olhando uma para outra.
Filé de merluza, arroz branco e purê de batata.
Estamos no terceiro assunto?
Que saudade de você (eu disse mentalmente).
Tenho pequenos sonhos com você, ainda.

Na verdade o prato chegou rápido, mas estávamos sem fome.

Quando eu te encontrei aquele dia, meu coração... sabe?
Você não sabe, nem quer saber.
Não precisa saber.
Nosso encontro para fotos, passado tão estranho.
Ainda somos estranhos?
Seu sorriso continua o mesmo,
mas eu prefiro cabelos cacheados.
Você não mudou o cabelo?

(Não lembro de você com esse cabelo em nenhuma fase da nossa vida)




terça-feira, junho 05, 2012

Insetos na cama




E na luminária, embesta o inseto; batendo-se na luz.
Somos nós, todos voadores, na fome de um rebanho.
Quantos oásis no céu se infiltram em doces sonhos?
Que a mente, enevoada do calor da noite, não traduz?

E as baratas, que invejo o casto escarlate, sobrevoam.
Que zumbidos, dos irritantes pernilongos; encantem.
Dos sonhos que, às vezes minto, também assanham:
Libélulas, como virgens,  não picam, mas mordem.

Na cama um inferno constante, o busto rígido reluz.
O dorso, nas mãos preso, em movimentos constantes.
Quer vôo menos tenso, o corpo na velocidade conduz.

E os bichos, escondidos, invejam a penetração infame.
Da boca que rompe qualquer corpo desnudo e breve.
Nos olhos que imaginam as veias que pulsam e fervem.